Autor: Bandeirante Tupi
sábado, 10 de diciembre de 2005
Sección: Artículos generales
Información publicada por: Bandeirante


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Gallaecia Meridionalis + Lusitania Septentrionalis

Portugal foi a síntese entre o Condado de Portucale e o Condado de Coimbra, logo a síntese original entre a Galiza Meridional e a Lusitania Setentrional

Em primeiro lugar existiu o núcleo forte demográfico do Entre-Douro-e-Minho, tecnicamente parte da antiga Gallaecia e que teve a sua capital sueva em Braga. Esta região foi invadida, mas nunca foi ocupada ou dominada inteiramente pelos árabes e seguramente houve uma continuidade demográfica, religiosa, política e principalmente lingüística desde a Idade Média. Se alguns nacionalistas galegos insistem em colocar a equivocadíssima posição de que a língua portuguesa resume-se a um simples prolongamento da língua galega, o Entre-Douro-e-Minho foi a Galiza Meridional, a Galiza que deu certo politicamente e formou o seu próprio Estado e jamais se submeteu à dominação política e linguística castelhana (para alguns nacionalistas galegos o Brasil falaria galego imaginariamente ! http://www.udc.es/dep/lx/cac/sopirrait/sr044.htm ). A atual língua portuguesa é a língua desta região, a língua do Entre Douro e Minho, evoluída socialmente ao longo dos últimos 800 anos de Portugal. A viabilidade de Portugal efetivou-se pela junção e síntese política entre o Condado de Portucale e o Condado de Coimbra http://www.celtiberia.net/articulo.asp?id=1379, no qual a existência de uma fronteira de conquista ao sul determinou a existência política de Portugal e a separação do resto da Galiza ao norte. Deve haver grande continuidade genealógica das populações cristãs do Entre Douro-Minho, que continua a sua língua, o antigo galaico-português no atual português, de modo que a língua da reconquista portuguesa foi este dialeto romance daí gerado e nascido. O Estado de Portugal foi a síntese inicial entre o que seria a Gallaecia Meridionalis e a Lusitania Septentrionalis.

A pior ofensiva moura aconteceu pouco antes da virada do ano 1000. Al-Mansur saqueou e incendiou as principais localidades cristãs. Até mesmo o Santuário de Santiago de Compostela foi saqueado em 997. Esta foi a mais destrutiva ofensiva moura, a mais destrutiva ofensiva moura desde a conquista inicial de Tarik, quando cruzou o estreito em 711.

A primeira fronteira ibérica mais consistente entre os cristãos e os mouros somente pode ser estabelecida por volta das primeiras décadas do século XI, por volta de 1040. No ocidente da península a fronteira basicamente seguia a linha do Entre Douro e Minho.
http://libro.uca.edu/socwar/map1.jpg

O Norte da Galiza e a Galiza Meridional formariam um segmento de homens livres, proprietários e que forneceriam a base de recursos humanos para a reconquista.
Lendo alguns dos excelentes textos sobre a história ibérica (http://libro.uca.edu/title.htm) é possível reconhecer alguns padrões sociais, culturais e políticos na nossa história remota.
"For many years it was believed that Galician rural society below the élite levels consisted entirely of such criatio-people. Recent research has established that there existed an intermediate and very sizeable class of free property-owners -- allodialists they would be called elsewhere -- who unlike [15] the criatio-men acknowledged no lord below the king.(39) This rural middle class was densely distributed over the whole face of Galicia. The evidence for its existence is furnished by innumerable charters recording sales and donations of land which survive in the cartularies of monastic houses such as Celanova and Sobrado. These alienations were invariably made without the sanction of any lord". http://libro.uca.edu/sjc/sjc.htm

A presença deste segmento de proprietários livres é a base da existência de uma forma de identificação e gestão territorial abaixo das freguesias - o "lugar". Freguesias são compostas por "lugares". Seria interessante a análise diferenciada entre a aldeia, termo árabe e o lugar, termo romance, refletindo as morfologias físico-territoriais entre o norte e o sul.

"In Galicia the word most commonly used to describe a unit of settlement is logar (This is the rendering in Gallego. The Castilian term is lugar. The words are of course derived from Latin locus.) The logar is a smallish village, it might today have a population of anything between fifty and three hundred people. The homesteads are normally scattered, there is not the tight bunching together that one finds in the typical pueblo. Each of them is surrounded by a complex of little yards, middens, orchards, vineyards and diminutive fields. Haphazardly strung out along a stream or road, on either side of a valley or near a suitable anchorage for fishing boats, the settlement may be distributed over a surprisingly large area. The logar does not have a centre, a focal point-again in contrast to the pueblo, which invariably has a central plaza, or square. It is characteristic that the road leading to such a settlement, which the visitor might expect to form a principal artery, dissolves within the logar into a confusing network of narrow lanes, with sharp twists and turns, unexpected dead-ends, and a disconcerting way of suddenly turning into a farmyard or of simply petering out on the edge of woodland or marsh: a maze where only the livestock appear to know their way about. All the evidence at our disposal suggests that the morphology of the Galician logar was much the same a millennium ago as it is today. That evidence is furnished by hundreds of charters recording donations, sales and leases of tiny parcels of land. The terms in which and the detail with which the bounds are described in these documents instantly call to mind the layout of the modern Galician logar"
http://libro.uca.edu/sjc/sjc.htm

Quem é que criou as bases remotas da língua galaico-portuguesa, que evoluiu para o português moderno ? O fato é que somente um "povo" cria uma língua como realidade social, somente um grupo étnico cria uma língua étnica e que se converte em língua nacional com a criação de um Estado Nacional. Isto implica um substrato demográfico denso e consistente o suficiente para estabelecer fronteiras, tal como a fronteira das primeiras décadas do século XI. A estrutura política estatal reforçaria e garantiria a língua portuguesa como uma das maiores línguas mundiais ao longo dos séculos. Mas houve um substrato demográfico anterior à criação de Portugal. O Estado ampliou a língua, mas somente grupos superiores nunca poderiam criar línguas, fato que pertece a uma demografia popular. A própria varonia real portuguesa é uma família de origem estrangeira no século X, quando um importante segmento local já falava o arcaico galaico-português. As bases de recrutamento e colonização para a guerra de reconquista, para a expansão ao sul e para a formação de Portugal estiveram fundamentadas em uma massa demográfica galaico-portuguesa previamente existente e disponível para as tarefas militares e de ocupação dos territórios ao sul. Qual teria sido a proporção desta gente na formação da população ao sul do Douro, ao sul do Mondego, do Tejo e no Algarve é um fato difícil de ser medido. Qual teria sido a proporção de população moçárabe e moura mantida após a conquista portuguesa no território ao sul do Douro ?
Encontrei o que eu procurava. Uma estimativa sobre o número de 650 freguesias no Minho em meados século XI, por volta da fronteira de 1040-1050. Eis a prova da população povoadora e fundadora do Estado Português e um cálculo estatístico do número de freguesias portuguesas pioneiras, todas no território da antiga Galécia Romana.

O Brasil só alcançaria a quantidade de 650 freguesias ao longo do século XVIII !

Na verdade a nossa fronteira não parou de avançar nos últimos 1000 anos. Atualmente encontra-se em remotas regiões da Amazônia, nas novíssimas áreas de expansão e povoamento da língua portuguesa.

BREVES NOTAS SOBRE PRESURIAS DO SÉCULO IX NA TERRA PORTUCALENSE

A RESPEITO DE VlMARA PERES por SÉRGIO DA SILVA PINTO

A revelação, que se deve ao Prof. Avelino de Jesus da Costa, dos primitivos censuais de Braga e Guimarães com as suas 650 freguesias, já organizadas, em meados do séc. XI, bem denota por estas partes uma população presa à terra de muito longa data. Sem essa população pré-existente à Reconquista, como ele adverte, essas centenas de freguesias levariam séculos a formarem-se, não há dúvida: o repovoamento de Afonso III trouxe apenas novos colonos, nos arredores de Braga e às portas de Braga, igrejas prístinas persistiram desde a época bárbara (S. Vítor, Montélios, Dume). Como é óbvio, o facto importa a permanência dos habitantes. Uma necrópole do séc. IX-X, nas proximidades da igreja de S. Vítor (que eu próprio revelei à Arqueologia portuguesa, com a preciosa confirmação de manuel chamoso lamas) (16) veio corroborar a perspectiva do mencionado historiador. Ora, sendo assim, a recolonização da Terra Portuga-lense no séc. IX, se em parte, que se não contesta, foi devida à gente galega chegada do norte, também provirá, mercê dos novos quadros político-administrativos, da irradiação daqueles núcleos populacionais anteriores, que se mantiveram, nos seus rincões durimínios, através da invasão sarracena.
http://ler.letras.up.pt/revistas/documentos/revista_15/artigo1081.doc

O Brasil teria um peso fundamental na sobrevivência econômica e política de Portugal entre os séculos XVII e XIX. Atualmente é o Brasil o centro mais importante em termos quantitativos da antiga língua galaico-portuguesa em função do seu peso populacional.

O Bandeirante Tupi
RCO
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  1. #1 Bandeirante 01 de ene. 2006

    Caros Amigos

    Adiciono mais dois curiosos artigos relativos à fronteiras e identidades no Brasil Meridional :
    Como o português do Brasil transbordou os seus limites externos e internos.
    Abraços e Feliz 2006
    O Bandeirante Tupi
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    LÍNGUAS DE FRONTEIRA: O DESCONHECIDO TERRITÓRIO DAS PRÁTICAS LINGÜÍSTICAS NAS FRONTEIRAS BRASILEIRAS

    Eliana Rosa Sturza

    INTRODUÇÃO Uma história das línguas praticadas nas zonas de fronteira do Brasil deve ser considerada a partir de duas condições fundamentais: a primeira, que as nossas fronteiras geopolíticas também se definem pela existência de um velho par de línguas, com um contato histórico e genealógico muito estreito, que é o do português-espanhol; a segunda, que a história de contato dessas línguas, na América, é compartilhada pela história de outras línguas com quais convivem e/ou entram em conflito. Ambas condições são reforçadas pelo modo como nossas fronteiras políticas foram sendo constituídas ao longo da história.A história dessas práticas lingüísticas, que se deseja apresentar, não objetiva recuperar apenas os registros existentes sobre as línguas praticadas nas zonas de fronteira. Mas pretende-se, sobretudo, realizar um resgate da história da produção científica sobre a situação lingüística das zonas de fronteira, especialmente daquelas onde os estudos sobre os contatos do português e do espanhol desenvolveram-se mais, criando inclusive uma reconhecida tradição em alguns meios acadêmicos, caso da Universidad de la República, do Uruguai. Quase dois séculos depois de conflitos, solucionados pela armas ou pela diplomacia, ainda desconhecemos muito da situação de contato das línguas portuguesa e espanhola nas zonas fronteiriças do Brasil com os demais países hispano-americanos. A fronteira do Brasil com esses países é caracterizada por zonas de grande concentração populacional, como o sul do Brasil, e outras marcadas por obstáculos geográficos naturais, caso do norte do país, onde existem zonas praticamente vazias de presença humana.De qualquer modo, mesmo onde os agrupamentos são menores e menos populosos, a fronteira efetivamente é complexa pela natureza de sua formação e pelo modo como se estabelecem ali as relações sociais das diferentes etnias que nela habitam. As fronteiras geográficas são preenchidas de conteúdo social.Se as fronteiras são sociais, se nelas vivem diferentes etnias – índios, espanhóis, árabes, portugueses, alemães, entre outros – o contato lingüístico é uma conseqüência inevitável, e a situação das práticas lingüísticas nessas regiões, de um modo geral, um campo pouco explorado pela lingüística brasileira.O número ainda escasso de trabalhos lingüísticos que possam, principalmente, mapear a situação das línguas de fronteira é resultado, sobretudo, da falta de organização e divulgação das pesquisas já realizadas e de uma maior focalização na questão do contato lingüístico nas nossas fronteiras por parte da lingüística brasileira. A exceção tem sido o grande interesse pelas línguas indígenas, principalmente, na bacia do rio Amazonas.Dentre as fronteiras do Brasil com os demais países hispano-americanos, a fronteira com a Argentina e o Uruguai, na chamada bacia do rio da Prata é, sem dúvida, onde o contato lingüístico foi historicamente determinado pelas línguas do Estado. Nessa fronteira, o contato lingüístico entre o português e o espanhol é decorrente de um século de litígios pelo domínio dos territórios, de uma política expansionista de ocupação da região e militarização das áreas, além da existência de povoamentos desenvolvidos e de um intercâmbio econômico, cultural e social já consolidado.Um bom exemplo, de que na fronteira do Brasil com os países da bacia do rio da Prata o contato entre as comunidades fronteiriças é regular e contínuo, é a recente decisão dos governos brasileiro e uruguaio de expedir uma Carteira de Identidade de "fronteiriço" para os chamados doble chap" – moradores que vivem ao longo da faixa fronteiriça, que abrange 900 km de distância e até 20 km de largura para dentro do território de cada país. (Zero Hora – 15/04/04).Esse fato, no alvorecer do século XXI, registra o reconhecimento da fronteira compartilhada, de um lugar menos imaginário, de um lugar que tem uma dinâmica social muito particular, sustentada pelo movimento migratório das populações e suas contínuas transgressões territoriais.Na fronteira Brasil-Uruguai, a transgressão dos limites ocorreu, sobretudo, para dentro do território uruguaio. Primeiro se instalaram os portugueses e, posteriormente, os brasileiros, de tal modo que isso possibilitou a manutenção da língua portuguesa e determinou a sua importância no próprio processo de ocupação da região norte do Uruguai.Esse fator histórico despertou interesse principalmente de lingüistas uruguaios, levando-os a estudar e pesquisar sobre a existência da língua portuguesa e sua extensão dentro do território uruguaio, a partir do final da década de 1950.O marco inaugural sobre a situação das línguas na fronteira Brasil-Uruguai, é o trabalho "Dialecto Fronterizo en el Norte del Uruguay", de José Pedro Rona, divulgado em 1959 e publicado, posteriormente, em 1965.A partir desse trabalho de Rona, ao longo de meio século, os estudos sobre a presença da língua portuguesa na zona de fronteira foram tendo regularidade e continuaram a focalizar este "Dialecto Fronterizo" como questão fundamental.(1)A regularidade das pesquisas e o debate interno que, a partir dele, passa a se instituir, é o do processo de designação da(s) prática(s) lingüística(s) resultante(s) do contato lingüístico entre o português do Brasil e o espanhol do Uruguai. Esse debate pode ser percebido nos diferentes modos como os pesquisadores titulam seus estudos e teses realizados sobre o português no Uruguai, tais como: Dialecto fronterizo del norte del Uruguay (Rona, 1965); Nós falemo brasilero. Dialectos portugueses del Uruguay (Elizaincín, Behares & Barrios, 1987); The sociolinguistcs of the brazilian-uruguayan border (Hensey, 1972); The social distribution of uruguayan portuguese in a bilingual border town (Carvalho, 1998).É importante destacar que designar essa prática lingüística é uma tarefa que já apresenta dificuldades e posicionamentos políticos no próprio contexto nacional de ambos países envolvidos, pois o português é "brasileiro" e o espanhol é "castelhano", o que já por si mesmo marca a diferença das línguas internamente às suas hereditariedades lingüísticas – língua portuguesa de Portugal e língua espanhola da Espanha e aos seus domínios políticos na América hispânica.O DESCONHECIDO TERRITÓRIO Quando Guimarães (2001) trata do espaço das línguas dominantes na América Latina, ele se refere ...a um espaço configurado pela presença de outras línguas em funcionamento, de um lado as línguas indígenas e o espanhol, além do contato com a língua portuguesa, e de outro as línguas indígenas, as línguas africanas e o português, além do seu contato com o espanhol. Neste sentido estamos configurando este espaço por uma memória que lhe é própria, sem a qual ele não é este espaço. E nesta medida cabe pensar, inclusive, a história da constituição do espanhol e do português como línguas nacionais.Este espaço desterritorializado é o que coloca as nossas línguas da fronteira em situação de contato. Com o status de línguas oficiais e predominantes, o português e o espanhol na América se colocam lado a lado ao longo das fronteiras geográficas que compartilham. Porém, do ponto de vista da situação étnica, os grupos de convívio e seus contatos lingüísticos, em diferentes regiões fronteiriças do Brasil com os demais países da América do Sul, contribuem para a constituição de um panorama lingüístico heterogêneo, muito aquém do que representa a dualidade português-espanhol no seu estatuto de línguas majoritárias.Um exemplo que ilustra bem esta situação é o que apresenta Oliveira (2000): São Gabriel da Cachoeira é uma cidade no centro da região mais plurilíngüe do Brasil, o Alto Rio Negro, no estado do Amazonas, nas fronteiras do país com a Colômbia e a Venezuela. O núcleo urbano tem cerca de dez mil habitantes e domina uma região de 112.000 Km-, maior portanto que Portugal ou o estado de Santa Catarina, com 409 aldeias nas quais funcionam 165 escolas indígenas bilíngües de ensino fundamental (de 1ª a 4ª séries). É um caso pouco 'típico' no país (se se pode utilizar tal conceito) mas que servirá para apresentar um caso concreto de plurilingüismo urbano e para pensar a formulação de políticas públicas nas cidades, incluindo-se aqui também a política lingüística. Disto decorre que nossas fronteiras são marcadas por uma heterogeneidade lingüística, iniciando-se ao norte (2), onde há esse contato entre as diferentes nações indígenas, o português e o espanhol, apresentando uma clara situação de plurilingüismo, até a região oeste, onde as fronteiras brasileiras são também marcadas pelo convívio das línguas portuguesa e espanhola com as línguas indígenas da Bolívia e do Paraguai.No caso do Paraguai, o reconhecimento do guarani como língua oficial e o seu destacado lugar como língua materna da grande maioria da população é um ingrediente fundamental na configuração das línguas da fronteira, sobretudo pela importância étnica e identitária que o guarani ocupa frente a outras línguas, as dos imigrantes e a do Estado (3).Vale lembrar, neste caso, a importância do contingente de brasileiros no Paraguai (4), os chamados brasiguaios, que levam para o interior das terras paraguaias a sua língua portuguesa (a de gaúchos, paulistas, paranaenses, mato-grossenses...). Na fronteira do Brasil com Argentina e Paraguai, mais ao sul, é esclarecedora a situação da província fronteiriça de Missiones. Nesta região, o fluxo migratório trouxe, especialmente, para dentro do território argentino, alemães, italianos e polacos, além de um contingente significativo de brasileiros, que contribuíram para fortalecer presença da língua portuguesa nas comunidades da zona fronteiriça. (Sturza,1994 e Maia,2002).Já no caso das fronteiras do extremo sul, limite com Argentina e Uruguai, o contato de línguas mais intenso e contínuo é o do português com o espanhol, embora haja na região a presença de outras etnias como árabes, italianos e alemães, em cidades limítrofes como Chuí, Uruguaiana, Aceguá, Livramento.Nessa fronteira, do Rio Grande do Sul com os países da bacia do rio da Prata, sobretudo na zona fronteiriça do Brasil com o Uruguai, há ainda uma terceira "língua", que não é nativa, não é a do imigrante, não é a do Estado. É a que funciona como mais uma nas práticas lingüísticas de grande parte da população fronteiriça e que resulta do cruzamento das línguas portuguesa e espanhola, da extensão ou do influxo de uma língua em território lingüístico da outra. Essas práticas foram designadas de dois modos: o portunhol – que abrange uma maior extensão de contato, ainda que com caracterizações discutíveis, e pouco definido enquanto fenômeno de contato lingüístico e os DPUs – Dialetos Portugueses do Uruguai – que gozam de um reconhecimento maior, de pesquisas e estudos regulares da lingüística internacional.Acrescenta-se a esse panorama da região Sul, o fato de que no mapa das variantes dialetais do português do Rio Grande do Sul, a região da fronteira está caracterizada por seu conservadorismo luso e por influxos do espanhol no linguajar do gaúcho, especialmente na linguagem informal e no meio rural (Koch; Altenhofen; Klashmann, 2002).AS LÍNGUAS DA FRONTEIRA: A SITUAÇÃO DA FRONTEIRA BRASIL - URUGUAI A ocupação das zonas de fronteira do Brasil com o Uruguai ocorreram, no lado brasileiro, obedecendo ao processo expansionista da Coroa portuguesa, em meados do século XVIII, que distribuiu terras e fundou guarnições militares na região. Em seguida, os grandes espaços vazios da região norte do Uruguai, foram sendo invadidos e colonizados. Mais tarde, os brasileiros, atraídos pela riqueza das terras e abundância de gado nativo, se estabeleceram no interior do Uruguai, em quase 300 km de extensão (Tau Golin, 2002).A comprovação da existência e da extensão da língua portuguesa e de seus dialetos no interior do Uruguai foi detalhada por Rona (1965), em mapas onde descreve as zonas lingüísticas fronteiriças com o Brasil. Seu estudo confirma que a região norte do Uruguai foi fortemente afetada pela presença, primeiramente, de portugueses e, depois, de brasileiros. Desse contato, afirma Rona (1963), surgiu um "dialecto mixto" ao qual denomina "fronterizo". Segundo ele, éste es una mezcla de portugués y español, pero no es ni portugués ni español y resulta con frecuencia ininteligible tanto para los brasileños como para los uruguayos. – Este dialecto es de base portuguesa, hispanizada.Na metade da década de 1960, dando continuidade à problemática do contato lingüístico nessa região, Hensey (1965) busca descrever e comprovar a existência de bilingüismo nas comunidades urbanas fronteiriças, diferentemente de Rona que concentra seus estudos mais em zonas rurais e objetivava localizar dialetos resultantes do fenômeno do contato lingüístico.No entanto, o pesquisador americano concluiu que o bilingüismo nessa zona de contato não pode ser considerado como o que existe em outras comunidades, pois o grau de bilingüismo dos falantes não é equivalente. Há um maior domínio do português pelos uruguaios do que vice-versa, isto se explicaria pela manutenção da língua portuguesa em território uruguaio. No norte do Uruguai, há falantes de português, o que comprovaria uma situação de bilingüismo, mas há também falantes de uma mistura de línguas, nas comunidades gêmeas, a qual Hensey (1969) descreve como um interlecto.No entanto, esse português de maior domínio por parte dos uruguaios é, na seqüência dos estudos, descrito por Elizaincín, Behares & Barrios (1987) como um dialeto (ou dialetos) da língua portuguesa, ao qual chamam de dialectos portugueses del Uruguay.Para esses autores, a situação das línguas na região norte do Uruguai se caracteriza bem mais por um convívio de dialetos, um na zona urbana e uma outra variedade de base portuguesa mais conservada no meio rural. Os falantes de "fronterizo" são monolíngües e se concentram na zona rural e nas periferias urbanas. Os falantes bilíngües ou como preferem descrever os autores, a situação de bidialetismo ocorre pelo domínio de um dialeto do espanhol padrão – espanhol regional e de um dialeto português do Uruguai.No entanto, para Carvalho (2003), a situação das práticas lingüísticas nessa zona fronteiriça é na verdade a caracterização de que português é esse que se pratica e como ele se distribui, dado a que a mistura dos sistemas lingüísticos do português e do espanhol não são aleatórias tal como afirma Elizaincìn, Behares & Barrios (1987), mas são condicionadas por fatores extralingüísticos.Para Carvalho(idem), o português falado pelos bilíngües uruguaios, nas zonas mais urbanas, é um dialeto do português brasileiro urbano. O português uruguaio rural é um dialeto falado nas zonas rurais por monolíngües, que corresponderia, portanto, ao "fronterizo" de base portuguesa de Rona (1965). O que pretende Carvalho (idem) é propor uma definição do português uruguaio, desfazendo a idéia de dialetos em convivência. Para ela, a manutenção de uma descrição lingüística que faz diferenças nestas práticas lingüísticas, classificando-as como "línguas" ou como "dialetos", reproduz a condição social dos falantes que as praticam. O que existe então, nessa zona fronteiriça, são duas variantes de uma só língua – o português. Punaren (1999), ao pesquisar a atitude lingüística dos uruguaios de Rivera, em relação ao prestígio do dialeto que praticam, decide designar o que Elizaincìn chama de DPU, de portunhol. Essa designação é recolhida por ele dos depoimentos dos entrevistados, que constantemente fazem referência a "fronterizo" e a "portunhol", utilizando-os, inclusive, como sinônimos.A dificuldade em definir o "portunhol", está nos sentidos que foram sendo constituídos pelo senso comum, especialmente, por referir negativamente, por dizer o "mal falar" uma das línguas da mistura, em geral, de brasileiros em relação à língua espanhola.Mas se pode formular, pela própria situação de indefinição do termo, duas hipóteses: a primeira é a de que o portunhol é sinônimo de fronterizo e de DPU, com uma tendência a designar mais o fenômeno no meio urbano (Punaren, 1999) e estaria mais restrito às zonas de contato mais intenso, tais como as cidades gêmeas na fronteira Brasil-Uruguai.No entanto, Punaren também designa esse mesmo fenômeno lingüístico de contato, nas zonas de fronteira da Argentina com o Brasil e se origina, do mesmo modo que na fronteira Brasil-Uruguai, pela forte presença de brasileiros em território argentino e pela manutenção da língua portuguesa como a língua familiar (Maia,2002). A diferença das zonas de fronteira é a extensão e consolidação do fenômeno. No caso uruguaio, ele é reconhecido como uma prática lingüística instituída, seria como uma "terceira língua".A segunda hipótese é a de que o portunhol é uma "interlíngua", remete ao processo de aquisição, especialmente do espanhol por parte de falantes brasileiros, e seria uma situação intermediária desse processo no qual os alunos misturam as línguas a nível gramatical e discursivo. É freqüentemente utilizado, neste mesmo sentido, pela mídia, na Internet e pelo próprio mercado editorial de livros didáticos da área (Sturza, 2004).Esta "terceira língua", predominantemente praticada em território uruguaio, recebeu inicialmente sua identificação como "fronterizo", tomando na sua designação o sentido geográfico. A partir daí, essa mistura de línguas foi sendo designada diferentemente ao longo do percurso das pesquisas lingüísticas, de acordo com as filiações teóricas de cada pesquisador, sobressaindo-se entre eles a sociolingüística variacionista.(Elizaincín et alli,1987; Carvalho, 2003). Todos esses estudos são sempre realizados no lado uruguaio da fronteira, em centros urbanos como Jaguarão-Rio Branco, Livramento-Rivera.E o que dizer, então, sobre o lado brasileiro dessas fronteiras? Neste caso, os estudos que tratam da questão do contato lingüístico também se localizam na tradição dos estudos dialetológicos e na sociolingüística, desde as descrições de Bunse (1969) até o mapeamento do Atlas Lingüístico-Etnográfico do Rio Grande do Sul (ALERS). O enfoque é sempre do ponto de vista das influências do espanhol/castelhano, dos influxos, dos espanholismos do vocabulário gaúcho, da entonação e pronúncia do dialeto gaúcho da fronteira (Bisol,1988), que sofre influências castelhanas. Porém, os resultados do contato não determinaram a existência de uma terceira variedade tal como os pesquisadores comprovaram existir na fronteira com o Uruguai. Dos mapas de Rona (1965) às tabelas de Carvalho (2003), designar a língua da fronteira é também dizer o seu lugar político nas relações históricas. Da neutralidade aparente do "fronterizo" de Rona (1965), passando pela referência à mistura do "portunhol" de Punaren; ao apagamento do português do Brasil que são os DPUs de Elizaincìn (1987), às tentativas de definição de Carvalho(2003), designar é muito mais, é redizer o litígio. É colocar o político no modo de designar as práticas lingüísticas em funcionamento. A política das línguas está nesse espaço das práticas lingüísticas, que não se resume à dualidade português-espanhol, mas que se enunciam nesse espaço configurado pela diversidade lingüística.CONSIDERAÇÕES FINAIS A língua portuguesa além das fronteiras brasileiras é uma outra língua. A sua extensão e o seu significado em território uruguaio são, como nos revela Rona (1965), é o reconhecimento de que existe uma língua portuguesa e brasileira no Uruguai. O que evidencia que ela não é resultado só do contato lingüístico, mas é de fato a comprovação de sua existência no interior do Uruguai, por isto o "fronterizo" es un dialecto de base portuguesa, hispanizada.Esse reconhecimento vai causar um efeito político definitivo, que está dito pelo modo como foram designadas as práticas lingüísticas da fronteira, sendo, inclusive, determinante para que se possa, hoje, compreender as relações das línguas na zona de fronteira e a políticas lingüísticas que este contexto constitui.Esse efeito é mais significativo ainda porque rompe com a visão da homogeneidade lingüística do espanhol no Uruguai. E eu acrescentaria que esta história, constituída por raros pesquisadores não brasileiros sobre a língua portuguesa /brasileira além de nossas fronteiras geográficas, nos chama a ocupar um lugar no debate sobre a língua portuguesa do Brasil que não está circunscrita as nossas fronteiras geopolíticas. Eliana Rosa Sturza é professora de língua espanhola do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, do curso de letras, no Centro de Artes e Letras da UFSM. NOTAS1. O artigo de Millán, Sawaris & Welter. "El camino recorrido: lingüistas y educadores en la frontera Brasil Uruguay", apresenta um histórico das pesquisas realizadas sobre as línguas em contato nas zonas fronteiriças do Brasil com os países do Prata, tratando também de suas conseqüências pedagógicas. 2. Para entender melhor a situação das línguas indígenas na Amazônia ver também Rodrigues, Ayron. Panorama das línguas indígenas da Amazônia.3. Ver tese de doutorado de Carolina Maria Rodríguez Zucolillo. "Língua, nação e nacionalismo. Um estudo sobre o guarani no Paraguai". IEL/Unicamp, 2000.4. Segundo Da Costa, 10 % da população paraguaia é composta de brasileiros, sendo que sobe para 50% na região leste do Paraguai, fronteira com o oeste do Brasil. Esse autor afirma, ainda, que o português representa a língua de minorias da Bolívia e da Venezuela. BIBLIOGRAFIA CITADABisol, L. "A vogal pré-tónica e a diversidade dialetal", in Ilha do desterro, número 20. Florianópolis: Editora UFSC. 1988.Bunse, Heinrich.E. W. Estudos dialetologia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Edições Faculdade de Filosofia, UFRGS. 1969.Carvalho, Ana M. "Rumo a uma definição do português uruguaio", in Revista Internacional de Lingüística Iberoamericana (RILI) volume. I,(2). Madri: editorial Vervuert. p.125-149. 2003.Da Costa. Antônio L. M.. Línguas da América Latina. www.antonioluizcosta.sites.uol.com.br/línguasElizaincín,A., Behares, L. & Barrios,G. Nós falemo brasilero. Dialectos portugueses en Uruguay. Montevidéu: Editorial Amesur. 1987.Golin, Tau. A fronteira. Governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. L&PM editores: Porto Alegre. 2002.Guimarães, E. "Políticas de línguas na América Latina", in Relatos. Junho, número Projeto História das idéias lingüísticas. Ética e política das línguas. DL – IEL - Unicamp/ DL - FFLCH –USP. 2001.Hensey, F. "Considerações metodológicas na análise da influência castelhana no português", in Véritas, Porto Alegre: PUC/RS, p.142-157. 1965.Hensey, F., The sociolinguistics of the Brazilian-Uruguayan. Border. Den Haag:Mouton. 1972.Hensey, F. "O sociolinguismo da fronteira sul", in Letras Hoje, Porto Alegre:PUC/RS, p.107-116. 1969.Koch, W., Klashmann, M. & Altenhofen, C. Atlas Lingüístico Etnográfico da Região Sul do Brasil, Vol.1. 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    ISO Format
    STURZA, Eliana Rosa. Línguas de fronteira: o desconhecido território das práticas lingüísticas nas fronteiras brasileiras. Cienc. Cult., Apr./June 2005, vol.57, no.2, p.47-50. ISSN 0009-6725.
    Electronic Document Format (ISO)
    STURZA, Eliana Rosa. Línguas de fronteira: o desconhecido território das práticas lingüísticas nas fronteiras brasileiras. Cienc. Cult. [online]. Apr./June 2005, vol.57, no.2 [cited 01 January 2006], p.47-50. Available from World Wide Web: . ISSN 0009-6725.


    A VIOLÊNCIA DO ESTADO NOVO BRASILEIRO CONTRA OS COLONOS DESCENDENTES DE IMIGRANTES ITALIANOS EM SANTA CATARINA DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

    Anita Moser (I)

    Este artigo faz parte de um trabalho de pesquisa realizado no sul do Brasil, no Estado de Santa Catarina, nas regiões do Médio e Alto Vale do Rio Itajaí, no primeiro semestre de 1993. Depoimentos de pessoas da primeira e segunda geração de descendentes de imigrantes italianos que aqui aportaram em 1875, vindos do Tirol Austríaco e da região do Vêneto, nos relatam a experiência da trágica agressão à sua identidade étnica a que foram submetidos pelo chamado Estado Novo, entre 1942 a1945.
    O controle sobre as minorias étnicas estava sendo desenvolvido pelo governo de Vargas anteriormente à entrada do Brasil na Segunda Guerra. Em 1942, com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos aliados contra as nações do Eixo, o Estado Novo realizou a campanha nacionalizadora para erradicar as diferenças étnicas através de uma assimilação compulsória.
    A construção do «mito da nação» e do «mito da personalidade» do chefe da nação, a exemplo das ditaduras européias, opera-se por mecanismos de persuasão, mas acima de tudo, pela violência garantida por um bem organizado aparelho policial que perseguia e identificava em todo o tempo e espaço, todo o tipo de dissidentes, deixando-se o caminho livre para múltiplas arbitrariedades.
    Os colonos são perseguidos na chamada «nacionalização forçada», pelo fato de não terem se integrado nacionalmente através do conhecimento e uso da língua oficial. Interesses ligados à política estadual também foram elementos determinantes na forma como os descendentes dos imigrantes foram atingidos em sua identidade étnica. Estereotipados como «inimigos da Pátria», eram denominados de «fascistas» e «nazistas» e, como tais, humilhados, presos, extorquidos monetariamente e castigados, a pretexto de terem, às vezes, pronunciado uma só palavra em língua estrangeira. A existência de delatores, recrutados, às vezes, entre os da própria etnia, mostra bem a que ponto a violência se transformou em um movimento de todos contra todos, justificados pela política em vigor. Não se respeitava nem o espaço privado. Era governador de Santa Catarina Nereu Ramos, em cujo governo, a proibição de expressar a identidade italiana foi reforçada, por uma aparelho policial extremamente feroz.
    Os descendentes dos imigrantes estavam enraizados em um núcleo de valores estáveis, que a língua tinha a missão de conservar e transmitir, tendo, desenvolvido, desde o início, suas próprias escolas, auxiliados pelos governos do país de origem, em articulação com a organização social que a Igreja Católica promovia. Isolados nas montanhas da Serra do Mar e participando nestes 65 anos, de forma cabal, no processo de desenvolvimento econômico e social do Sul do Brasil, como produtores de alimentos, ainda não estavam integrados à língua nacional na década de 40, e, neste mais de meio século, o governo brasileiro não se ocupou de sua integração. A perseguição a estes colonos por motivos de uso do dialeto italiano, representou acima de tudo violência: mortificação do eu, dor, humilhação, desprezo, incompreensão e injustiça, e acima de tudo, a introjeção do medo e da vergonha de se falar a língua de suas origens étnicas (II)
    A metodologia adotada nesta pesquisa privilegiou em primeiro lugar a reflexão, em grupo interdisciplinar, analisando as questões referentes à violência e sua constância na trajetória social destes colonos, desde o desenraizamento vivido na emigração forçada, do isolamento e abandono durante novo enraizamento em terras brasileiras, a partir da violência dos Estados envolvidos e da normalidade da violência no próprio processo da construção de sua identidade social.
    As entrevistas foram feitas com descendentes de italianos de diferentes classes e categorias envolvidos nos processos abordados. A história de quem viu e sofreu a violência foi registrada através de 24 entrevistados, de origem trentina e vêneta, cujas idades variaram entre 67 e 93 anos, em 7 (sete) municípios: Rodeio, com os distritos de Diamante e Doze; Timbó, Ascurra, Rio dos Cedros, Laurentino, Rio do Oeste, Rio do Sul e Blumenau. Entre as técnicas de entrevistas, privilegiou-se a história de vida e depoimentos. Três questões básicas orientaram estas entrevistas:
    1) vivências e práticas educativas na infância e adolescência;
    2) conhecimento e participação no movimento integralista;
    3) violência sofrida ou vivenciada por familiares durante a perseguição étnica no período do Estado Novo.
    Ao darem seus depoimentos, sobre a violência sofrida durante o Estado Novo, os colonos entrevistados deixam claro que eram brasileiros, que queriam falar a língua nacional, mas que não podiam renegar a terra e a língua de seus pais. A política de nacionalização forçada exigia uma integração, sem respeito à identidade étnica. Um silêncio histórico paira ainda sobre estes fatos violentos.
    Quanto à reflexão sobre o fenômeno da violência, diversas questões foram levantadas, no que diz respeito à sua possível legitimação, a partir do silêncio que se criou sobre o que aconteceu: até que ponto os Estados Nacionais, desprezando a experiência e riqueza das diferenças culturais, criaram mecanismos e instrumentos para imobilizar e violentar cidadãos, tanto no espaço público quanto no privado, em busca do valor maior da chamada unidade cultural da nação? Por que esta violência se transforma em algo tão banalizado e «natural»? O êxodo da Itália, em condições de penúria extrema, e a construção de sua identidade étnica em terras brasileiras, em condições de isolamento e enfrentamentos de toda a ordem, minimizaram aos olhos dos imigrantes, mais esta experiência de violência, endurecendo sua sensibilidade? Urna cultura violenta, no caso a européia, daria substrato para «naturalizar» esta nova violência? Os valores presentes na constituição de sua identidade cultural, especialmente a identificação com a moral católica, encobriram a violência durante o Estado Novo? Mas os que sofreram a violência, corno a sentiram e como a re-apresentaram? O que significou para as populações, para quem a língua cotidiana, é a única que conhecem verem-se estigmatizadas, diminuídas e desprezadas por usá-la? Como introjetaram este desprezo? Como o repassaram? Seria o fato de não refletirmos sobre esta questão e sobre o próprio conceito de violência, que a faz bastante invisível? Se os «mitos» justificam, até que ponto o mito nação e «Estado nação» amenizaram o fato de ter havido esta violência? O que representou esta violência em termos da redefinição dos valores culturais da época? Em que medida o violentado introjeta os valores do «outro»?
    A preservação da identidade étnica pode e deve caminhar junto com a idéia de integração social. Não é nosso intento, neste estudo, exacerbar o seu caráter de vítimas, apontando o dedo indicador para os culpados. Queremos, sim, em primeiro lugar, propor o exame da violência na relação dos diferentes elementos em jogo e colaborar, para que a reflexão do que sucedeu nos preserve de ver estes fatos se repetirem.
    Importa também levar em conta que, da mesma forma tempestuosa com que estes fatos ocorreram, foram silenciados e permaneceram desconhecidos pela grande maioria dos descendentes dos colonos, que, no entanto, por quase quatro décadas tiveram vergonha expor sua língua materna em espaço público e transmitiram este sentimento a seus filhos.
    Hoje, quando se aprofunda a consciência da necessidade da preservação da identidade étnica e dos valores culturais locais, este estudo pretende ser urna página que passa, assim, a ser parte de sua memória social. Outrossim, constitui-se, também, em um elemento de análise, para os estudos que se fizerem futuramente.
    Concluímos que os fenômenos da violência precisam ser identificados continuamente, onde quer que se apresentem e sob que roupagens se escondam, Importa afirmar que este, no entanto, é o primeiro passo somente. O seguinte passo é criar canais de compreensão mútua, abrindo caminhos de comunicação com os diferentes. Pode-se perguntar: a globalização servirá de caminho para criar redes de reciprocidade entre os povos, construindo uma sociedade mais solidária?
    Capítulo IV
    2. 1 Formas de violência física
    As violências físicas foram diversas, entre elas a prisão e os trabalhos forçados por longos períodos. Nesta pesquisa, não encontrei pessoas que, no caso, relatassem casos em que tivessem sofrido torturas físicas, a não ser por ocasião da perseguição aos chefes integralistas, que ficaram presos na penitenciária de Florianópolis. Isto não exclui a possibilidade de terem ocorrido abusos contra a integridade física. A razão da não visibilidade deste tipo de violência pode ser a seguinte: ou as vítimas já faleceram, ou os envolvidos não desejam falar sobre o assunto. O que se averiguou é que o pânico era geral, e a maioria fala do terremoto (III) ocorrido, ainda com muita emoção, 50 anos após terem ocorrido estes fatos.
    Durante os trabalhos forçados, chamados de «trabalhar na picareta», pelos entrevistados, as pessoas, sentiam-se violentadas, trabalhavam de sol a sol, não recebiam comida e passavam muita sede. Tinham que levar seus próprios meios de trabalho, como carroças, carinhos de mão, pás e enxadas para efetuar obras públicas. Muitos trabalharam meses neste castigo. Quem trazia comida eram os amigos.
    Os que eram presas no Alto Vale, eram obrigados a trabalhos forçados, fazer estradas, cavar, demolir morros, só com comica reduzida. De dia trabalhavam e de noite se recolhiam ã cadeia. Ficaram fora de casa, separados, ficaram um tino, ou talvez mais, fazendo estes trabalhos. E ninguém se atrevia a sair em defesa deles» (Homem, 70 anos).
    «Outros, como..., teve que trabalhar na prefeitura, fazendo faxina, como castigo. Ficou muito sentido» (Homem, 86 anos).
    «No Alto Vale, colocaram muita gente na picareta. Todos os que tinham carroça, deviam trabalhar de graça» (Homem, 65 anos).
    O que ficou claro é que, pessoas que moravam em lugares menores, mais desprotegidos, que eram mais pobres, foram castigadas exemplarmente. Ainda hoje, as pessoas ficam emocionadas, quando comentam a forma como foram desrespeitadas, em diferentes situações. O silêncio, para muitos, parece ter sido o caminho mais fácil.
    Outra forma de agressão física era a invasão dos espaços privados, onde a truculência era total:
    «Os policiais, mesmo sem ordem de busca, invadiam casas, vasculhavam moradias de pessoas indefesas, queimando livros, jornais e revistas, quadros, verdadeiras relíquias trazidas pelos imigrantes do passado» (Mulher, 86 anos).
    O que na verdade foi amplamente utilizado foram os mecanismos de intimidação, a toda hora, em todo o lugar e a todo o instante. No item que segue, é possível averiguar este fato, nas representações dos entrevistados.

    2.2 Formas de violência psicológica: a imobilização e a mortificação do «Eu» pela técnica do amedrontamento
    O amedrontamento como técnica psicológica utilizada foi o óleo que lubrificou toda a engrenagem de dominação e violência. O medo atingiu a todos, tanto no espaço público quanto nos privados. Em quase todos os depoimentos, foram constantes as declarações que afirmavam que, tanto os agentes da Polícia, quanto os espiões e delatores, invadiam até espaços privados os quais não ofereciam segurança alguma. Todos podiam ser surpreendidos e delatados, a qualquer momento. A presença do medo era total, pois os espiões não só rondavam a casa, mas se escondiam embaixo dela, para surpreender alguém num flagrante.
    «Era mais os homens que iam para a cadeia. Meu pai, uma noite estava falando com minha mãe e no dia seguinte foram presas, porque um espião foi delatar. Foram presas, levados a Blumenau com mais vinte. Leandro Longo foi quem foi pedir para soltar. Não havia caboclos por lá. Os próprios italianos e alemães era quem denunciava; eles ganhavam e se prestavam para isto» (Homem, 86 anos).
    «Eu dormia lá no meu tio, porque meu pai e minha mãe morreram quando eu tinha 14 anos. E daí de noite era para falar bem baixinho. Com muito medo, fechava as janelas, e ia ver se não vinha alguém para espiar se a gente falava. A gente não podia falar e se falava era bem baixinho, se não ficar calado. E calado a gente ia dormir, mas com medo ainda» (Homem, 70 anos).
    «Os italianos fechavam janelas e iam dormir calados e ver se havia alguém escutando» (Homem, 86 anos).
    Os delatores e espiões aproveitavam festas sociais e bares, para surpreender alguém e denunciar.
    «Eles estavam sempre à paisana. Ninguém conhecia» (Homem, 80 anos).
    Havia, no entanto, casos de tolerância dos próprios policiais em relação aos colonos, a não ser que estivessem em presença de seus companheiros (IV). Este fato evidencia que se o jogo da violência obrigava a todos a submeter-se, muitas vezes, o bom senso superava o arbítrio.
    O medo de ser denunciado tinha diversas razões e entre estas estava o confinamento por 24 horas. Um entrevistado relata o caso de uma família de aproximadamente 12 pessoas que estava reunida, à noite, em casa, planejando o serviço da lavoura para o dia seguinte. Batem à porta! Alguém de casa fala a expressão usual: Avanti, Avanti! (Entre, entre!). A polícia entra, prende e todos seguem para a delegacia, onde ficam presos por 24 horas.
    A ameaça de prisão pairava sempre no ar. Esta era mais violenta que a própria prisão, pois instaurava no cotidiano, o cerceamento da vida e do espaço público. De outro lado, o crime de ameaça, ou seja, a da prisão anunciada, era violência, na medida que as pessoas sofriam por antecipação.
    «Quando veio a proibição da língua italiana, as janelas não foram mais abertas e nem a porta. Porque nos colocavam na prisão. Todos os meus irmãos foram para a prisão. Eles não sabiam falar português porque não tinham apreendido» (Mulher, 93 anos).
    A proibição da língua materna italiana interferiu na vida social, comercial e cultural da comunidade. As pessoas não podiam se expor como o tinha feito até aquele momento. Ficaram amedrontadas e tolhidas em sua vida econômica, religiosa e social, evitando eles mesmos momentos de sociabilidade entre seus iguais. Uma simples expressão poderia indicar que aí estava um «inimigo da Pátria».
    «Agora o pessoal ficou tão intimidado, pessoal do interior já não vinha mais para a cidade. Eu me lembro aqui em Mulda - Morro Azul e aqueles colonos lá em cima não desciam mais pra Timbó. Eles vinham sempre, semanalmente, vendendo produtos da lavoura e lá em cima tinha um tamponeiro que trazia pra Timbó, farinha de milho, farinha de polenta, que aqui não se encontrava. Ele trazia, ele tinha freguesia dele 7, 8, 10 fregueses, então ele trazia toda semana a polentina. Um dia ele foi preso, foi levado pra delegacia, mas liberaram, mandaram embora logo. Não veio mais com a polentina. Eu não sei falar português, ele dizia, não posso descer mais» (Homem, 86 anos).
    Outro entrevistado afirmou que, aos domingos muitos iam trabalhar na roça o dia inteiro, pois se fossem para à missa poderia comunicar-se e correriam o risco de serem presos por pronunciarem simples palavras.
    Houve casos de colonos que criaram estratégias para poderem ir à missa dominical sem serem traídos pela fala. Um entrevistado narra, em seu depoimento que um colono de 80 anos, saia regularmente de casa para ir à missa dominical. No entanto para se garantir contra o perigo de falar em dialeto quando encontrasse no pátio da Igreja ou no seu percurso com seus conhecidos, colocava o cachimbo à boca e só permitia tirá-lo de volta à casa. Era assim que este também se livrava de ir preso por vinte e quatro horas.
    A prisão de 24 horas constituía-se numa estratégia de disciplinamento exemplar. Através dela se reforçava, o medo de tudo e de todos. E esta compreensão de que, o que interessava era o amedrontamento, os colonos a expressam continuamente:
    «Colocavam na cadeia vinte e quatro horas, soltavam e mandavam embora estes não apareciam mais em público, falando italiano. Era mais para intimidar que eles faziam isto» (Homem, 70 anos).
    Além da prisão de vinte e quatro horas, havia outra prática empregada com o objetivo de intimidar e amedrontar e imobilizar: a ameaça de ter que tomar óleo de rícino ou lubrificante como castigo.
    Novamente a mesma estratégia disciplinadora se faz presente e se amplia, através dos boatos sempre reiterados. Em todas as entrevistas, quando expressamente perguntados se, realmente, conheciam alguém que tinha tomado óleo, respondiam:
    «Aqui não houve ninguém, mas lá, naquela comunidade, fala-se que muitos tomaram, até óleo de carro».
    «Falavam que tinham dado um garrafão de óleo para alguém que não sabia falar português. Isto se escutava, não se sabe! Garganta abaixo como se dá para o gado! Escutava-se isto, e por isso todos ficavam com medo e não se falava. Ficavam com boca fechada e não saíam de casa. Isto foi muito forte» (Mulher, 71 anos).
    Uma entrevistada relata assim o episódio sobre o castigo de ter de tomar óleo, depoimento este que a mesma escutou da esposa da vítima, neste caso o alemão, de nome C.D., onde transparece o grau de humilhação que esta forma de castigo acarretava:
    «Amarraram os braços nas costas e colocaram a garrafa na boca e deram óleo. Aí ele teve que andar, com as pernas da calça amarradas, para que quando o óleo fizesse efeito, as fezes ficassem dentro da roupa. E assim ele ficou por dois dias».
    Um expedicionário entrevistado, também se refere à sua experiência sobre este assunto:
    «No exército se trabalhava no domingo, e castigavam se falasse língua estrangeira. Mandavam prender e castigar. Eu vi, quando castigavam um soldado alemão, em Joinville. Colocaram ele na mangueira do cavalo e puseram uma borracha da mangueira pela boca e davam óleo e depois botava numa carroça de cava/o e ia embora. Aí ele se sujava... » (VI)
    Aqui o «inimigo da Pátria» é animalizado, obrigado a fazer suas necessidades em público. O grau de destruição do «self» que esta violência provoca, não é difícil de imaginar. Talvez, aí esteja presente uma explicação, para o silêncio: quem foi assim castigado, nunca mais recordaria este fato, pela dor e humilhação que o mesmo provocou.
    De outro lado, sobre o costume de obrigar o «culpado» a ingerir óleo de rícino (VII), com todas as conseqüências advindas do fato, já era conhecido por alguns. Assim se expressa um entrevistado, demonstrando a funcionalidade desta prática fascista:
    «Era um castigo, por exemplo, na Itália existia esse costume no tempo de Mussolini. Ele endireitou a Itália com aquele sistema... . Porque a Itália naquele tempo era uma desordem, aqueles socialismos, a Itália praticamente não tava unificada. Ele endireitou a Itália...» (Homem, 86 anos).
    Evidencia-se aqui o grau de autoritarismo introjetado. O que se constatou, muitas vezes, entre os entrevistados, é o fato de afirmarem que diversas pessoas tomaram óleo. No entanto, parece que isto, entre os italianos, ficou somente como crime de ameaça e forma útil de amedrontamento. O que não aconteceu com os alemães pelo fato de existirem relatos comprobatórios desta prática. Conclui-se que o processo de intimidação, através do boato cumpre exatamente um papel fundamental: imobiliza. Embora ninguém veja, o fato está sempre presente.
    Se o medo imobilizava a comunidade, como um todo, seus efeitos foram sentidos de modo sui generis pelas crianças nas escolas onde era expressamente proibido falar qualquer palavra em dialeto italiano. Mesmo as professoras de origem italiana foram muito rígidas contra o aluno que falasse qualquer palavra neste dialeto, amedrontando-os. E o que relata uma entrevistada: quando surpreendida pela professora falando italiano, esta, de dedo em riste, assim fala para a aluna:
    «Você nunca mais me faça isto. Por hoje eu te perdôo. Na próxima vez vai ser diferente» (Mulher, 67 anos).
    Uma professora entrevistada assim relata a ocorrência em sua SALA de aula, demonstrando que os delatores, estava especialmente também na escola e neste momento, conseguiam dar vazão a raivas contidas:
    «Tinha uma professora que tinha raiva de nós e deu queixa que nós estávamos falando em italiano em SALA. Mandaram sargento e inspetor escolar e ficaram uma hora escutando escondidos para ver se a gente falava italiano. [...] Eles assustavam: "Olha se vocês falam língua estrangeira, vai acontecer com vocês o que aconteceu com os outros. Toma óleo"» (Mulher, 70 anos).
    Qualificava-se assim o portador desta linguagem como moralmente inferior e desprezível, e isto era reforçado por ocasião das visitas das autoridades à escola. Estes fatos foram identificados por quase todos os entrevistados como um «terremoto»> que se abateu, durante a nacionalização, sobre os estrangeiros considerados os «inimigos da pátria». O depoimento de exprefeito, presente à inauguração do grupo Osvaldo Cruz em Rodeio (1942) é elucidativo ao recordar trecho do discurso do governador Nereu Ramos, na ocasião. Ao se dirigir aos alunos, afirmou-lhes que eles eram «brasileiros e que seria preferível que tivessem suas línguas cortadas, do que continuar a falar o italiano». O ex-prefeito (90 anos) relata o acontecido, ainda hoje, com muita emoção.
    Talvez para as crianças, isto representasse urna norma a mais que se deveria observar sob pena de ser castigado. Era um «não» somado aos muitos que compunham o seu cotidiano. Essas novas normas sociais encontravam justificação nas normas rígidas de sua própria cultura, onde as ameaças eram constantes. No entanto, contribuiu neste momento de sua socialização, para «marcar» o idioma italiano, sua língua, como algo desprezível. Certamente este dado foi deixado no inconsciente como mais uma repressão, invisível mas que poderá explicar a desvalorização da identidade étnica naquele momento histórico. Novamente é a invisibilidade que «atenua» todos os atos violentos. Talvez a geração que mais sofreu as conseqüências da desvalorização de sua identidade étnica, foi aquela que estava no período de socialização primária (a terceira geração nascida o Brasil). Cresceram não com o orgulho de ser bilíngüe mas com o estigma de que sua língua era algo desprezível. Esta cresceu sem ter a consciência de suas raízes culturais. A introjeção desta violência no processo de sua socialização como filhos dos colonos, faz com que, no presente, falar sobre ela produza perplexidades em muitos, dando-se conta da violência sofrida.
    2.2.1 A extorsão institucionalizada
    A humilhação estava presente em todos os procedimentos autoritários da época da nacionalização forçada, mantendo o dominado mortificado pelo agressor.
    Numa sociedade onde o dinheiro ganho pelo trabalho na lavoura era escasso, as perdas materiais e as atitudes de extorsão monetária se constituem numa forma particular de mortificação do «Eu». Os colonos viram-se presos a uma rede de extorsão e a prisão se transformou em motivo para se praticar esta espécie de violência, como se pode constatar no depoimento que segue:
    «As armas como espingarda, eles levavam embora, e se tinha livros, eles queimavam e a pessoa era denunciada, tinha que se apresentar na delegacia e ia para a cadeia, por 24 horas e depois era solto. Cobravam 10 mil reis naquele tempo. Era o dinheiro o que interessava para eles» (Mulher, 70 anos).
    Muitos, ou quase todos os entrevistados falam na extorsão como algo que se institucionalizou:
    «Aí eu me apresentei, mas ele só queria isto... [dinheiro]. Eles faziam isso só para ganhar dinheiro. Falou italiano, ia para a cadeia. Ia lá, dar os cinco ou dez mil réis» (Homem, 86 anos).
    Muitos colonos também viram-se obrigados a desembolsar este dinheiro para não serem denunciados. Os casos de roubos feitos pelos policiais nas suas inspeções eram também comuns.
    2.2.2 Estigma de «quinta coluna»
    A generalização do estigma de «quinta coluna» (IX) ou nazista para qualquer um que falasse a língua de origem, era um estereótipo inaceitável para estes colonos. Este estereótipo classificava o estigmatizado como traidor da pátria, às vezes a partir de uma simples palavra
    «Eu cheguei lá para vender abacates e o sobrinho se esqueceu e falou em italiano, baixinho. E aí eu disse. ‘‘Eu te vendo por 300 réis cada um [em italiano]. O delegado ouviu. ‘Tem que se apresentar". Aí eu fui me apresentar. Aí ele me tratou de "boca grande". Ele não podia me dizer isso! Aí ele me disse que eu era ‘quinta coluna", um boca grande". Isto é um crime!... Aí eu me apresentei... mas ele queria isso... [dinheiro]. E por isso eu fiquei "sujo" lá. Mas a sujeira ele fez, né?»
    «O que você sentiu na hora, lembra?»
    «Ah? Dor! Porque eu não merecia isto! Porque se eles soubessem todo o meu passado!... Isto não se esquece jamais! Por que se eles soubessem todo o meu passado!... Eu fui um homem que andei direito e que nunca mandei marcar minhas dívidas nos negociantes» (Homem, 90 anos).
    No momento em que sua identidade é desvalorizada pela sujeira em que mergulhou pelo fato de ter que se apresentar numa Delegacia como um «quinta coluna» e ser considerado um traidor da Pátria, o estigmatizado em contrapartida invoca alguns dos conteúdos positivos que lhe garantem a sua identidade de colono italiano: seu valor pessoal a partir da construção de sua existência pela prática do trabalho.
    «O meu estudo foi em italiano, mas eu sabia muito mais que o professor. Hoje em dia o que eu sei eu aprendi sozinho, por mim mesmo, estudando. Conheceu o Pero Vota? Eu aprendi muito com ele e também ensinei muito a ele. Agora a senhora sabe como pode tirar medida, da altura de uma árvore com a sombra do sol?... Eu sei!...» (Homem, 90 anos).
    Todos os conteúdos da construção da vida de colonos, incluem as representações (de um passado de lutas: o trabalho duro na lavoura no início da colonização, a luta pela organização da comunidade, a abertura de estradas, a fundação e pagamento de escolas para os filhos e de Igrejas para a prática da religião. O Estado brasileiro, sempre ausente, é recordado, quando se quer chamar a atenção sobre o próprio valor. Sentiram-se brasileiros, especialmente pelo fato de através do próprio trabalho duro estarem construindo o Brasil. Esta era é a maior fonte de sua valorização.
    Evocam também o fato e fundamentalmente o fato de terem servido à Pátria, qualificando-se assim, a si próprios de brasileiros de fato:
    «Foi entre 1926 e 1927. Eu era casado. Os nomes vinham no jornal. Eram sorteados. Eu fui sorteado para ir para o Rio de Janeiro. Aí eu disse:"Eu sou casado, quero ficar aqui em Blumenau" e fiquei. Fui lutar em Palmas, Joaçaba, Iratí (Paraná), em Porto União era o nosso acampamento. O gelo quebrava as barracas. Foi uma luta desgraçada. Fui de Palmas. Levei um mês para chegar a Porto União».
    O entrevistado (90 anos) fala de um tempo e de um lugar (Porto União) em que a justiça se fazia pelas próprias mãos:
    «Naquele tempo não era como agora. Falou em briga, podia contar com a morte».
    No momento em que sua identidade é desvalorizada ao ser confundido com um traidor da pátria, é invocado como conteúdo positivo de sua identidade nacional a prestação do serviço militar (IX).Durante as entrevistas se percebe a emoção ao apresentarem o livro do serviço militar, contendo todas as normas e orientações sobre o mesmo. No caso peço o livro ao entrevistado e ele:
    «Não vai perde. Tem 13 meses de serviço militar. Quer ver minha carteira? Sabe ler, né? Lê a carteira militar, lê que eu gosto...».
    Pergunto então: «Daquela ofensa que lhe fizeram de lhe chamar de "quinta-coluna", lembra ou já esqueceu?»
    «Lembro, isto não se esquece jamais. Meu Deus!... sabendo que este negócio está muito errado, desses canalhas que querem se aproveitar de uma pessoa que não tem culpa» (Homem, 90 anos).
    O exército era a única instituição que configurava concreta e oficialmente sua identificação com o Brasil. Importa salientar que o exército foi a instituição que lhes possibilitou o aprendizado do português. Em depoimento, um entrevistado conta que seu pai pagava aulas extras de português no exército, gastando para isto todo o soldo que recebia como soldado. Este trabalhou depois como negociante e o conhecimento do português, como meio de comunicação, era importante. Este entrevistado me assegurou que em sua casa falavam o português. No entanto, atribuir a qualquer colono de origem estrangeira, o estigma de «quinta-coluna», por não se comunicar em língua nacional transformou-se em algo banal e corriqueiro, deixando marcas profundas nos atingidos pelo estereótipo.
    Fiori (1994) afirma que:
    «Se de um lado, o não uso do idioma português era considerado um ato de traição à pátria brasileira, de outro, o emprego (do idioma estrangeiro (independentemente de qualquer analise política) qualificava o falante impunha-lhe um estereotipo, estigmatizava-o; se a língua era o italiano, trata-ia-se de um fascista; se o idioma era o alemão, tratava-se de nazista, um "quinta-coluna"».
    Durante a Segunda Guerra, a imagem dos «inimigos da Pátria» foi reforçada diariamente tanto pelas notícias internacionais emitidas pelos Aliados (Agências de notícias norte americanas) de onde eram distribuídas para o mundo como também, pelo serviço de divulgação da polícia na capital federal e muito especialmente no caso de Santa Catarina, pelos jornais de Florianópolis na mão do governo estadual", cuja publicação diária de casos concretos, onde pessoas eram identificadas e presas como «quinta colunas», recriavam no imaginário da população os «inimigos da Pátria», confirmando aos olhos de todos, assim, todas as suspeitas do governo. Assim a violência se legitimava: «Era preciso acabar com esses inimigos».
    Esta estigmatização que os atingia mais profundamente pelo fato de se saberem vítimas acusados de um crime que não existia, deixou-os traumatizados. Tentaram resolver esta dor pelo esquecimento dos fatos ocorridos. Mesmo que estes «não se esqueçam jamais» (XII)
    2.2.3 Destruição da memória afetiva
    Por memória afetiva entende-se o cultivo e o reconhecimento das raízes culturais, representadas por símbolos, como retratos, livros, cartas, objetos, cantos, armas (espingardas que tinham trazido da Europa, e que aqui lhes eram muito úteis), lembranças, enfim, da terra de origem.
    A destruição dos símbolos materiais, e da própria língua (XIII) tirou algo que era muito caro a quem os possuía. Destruindo os seus símbolos os colonos foram atingidos emocionalmente. Talvez esteja aqui toda a força da violência simbólica.
    Foi destruído tudo o que representou campo de cultura. A destruição da língua materna, como parte da integridade cultural era, na verdade a mais cobiçada, pelo governo como também a destruição da memória cultural representada pelos velhos, que aqui personificavam a memória viva oral. Nesta perseguição, eles foram o principal alvo da violência, com abalos emocionais sobre eles próprios e suas famílias. Estas, de modo geral, se sentiam muito mal com aquilo que estava acontecendo a estes pais ou avós, que não sabiam falar português e que, a verdade representavam a autoridade desprestigiada.
    A destruição desta memória foi feita tanto pelos «policiais, que rasgavam e queimavam tudo o que não fosse brasileiro» (Mulher, 71 anos), como pelos próprios colonos, que para não correrem o risco de serem denunciados e terem que ir para a cadeia, preferiam destruir o que representasse este perigo.
    «Famílias de Rio dos Cedros tinham pequenas bibliotecas, revistas vindas da Itália, jornais da Itália, quadros, verdadeiras jóias e tesouros e outras lembranças do Rei Humberto 1 e da Rainha, Francisco II da Áustria e a rainha Regina. As famílias, de medo, queimavam os livros, às vezes cartas e retratos também» (Homem, 70 anos).
    «Quadros da rainha Margherita e Victor Emmanuele III. Tudo isto foi queimado. Os soldados queimavam tudo o que encontrassem» (Homem, 86 anos).
    Muitos, na esperança de reavê-los, enterravam os mesmos ou os escondiam, debaixo de uma pedra. Em todos os depoimentos, constatou-se que os livros nunca mais foram recuperados, pois apodreceram:
    «A maioria tinha muito medo. Havia pessoas que queimaram muitos livros, talvez muitas lembranças, por exemplo, imagem de um santo que estava escrito embaixo em italiano, eram queimados e jogados fora. Eram muitas coisas, documentos foram jogados fora, queimados, escondidos. Eu lembro daqueles jornais que eu tinha falado antes: meu pai pegou, botou num caixão, pregou e levou num capinzal, lá em cima, no meio do mato. (Homem, 70 anos).
    «O meu pai tinha espingarda e livros italianos, teve que levar tudo embaixo de uma pedra no morro do Arduino Dalpiaz. Se viessem os investigadores e pegassem, ia todos para a cadeia. Os livros apodreceram» (homem, 86 anos).
    «O avô tinha coletâneas de livros sempre atualizados. A maior biblioteca. Enterrou os livros» (Homem, 70 anos).
    De outro lado, havia ordem oficial de tirar, até dos túmulos, qualquer inscrição em língua estrangeira, e isto vigorava desde 1938, por ocasião da perseguição ao Integralismo (XIV).
    O que se pode analisar é que toda esta destruição representou grande ofensa, para aqueles que perderam seus objetos. Isto foi sentido como própria ameaça a sua integridade física, pois destruir objetos queridos é também atingir e destruir os donos deles. Representou, também, a morte da memória afetiva para os filhos da 1° geração, que cresceram sem conhecer suas raízes. Como seres essencialmente emocionais muitos destes espaços interiores foram mortos também.
    Um outro momento, muito patético, é o constrangimento a que foram submetidos, na troca de nomes próprios e na insistência que lhes faziam, especialmente no exército, conforme os entrevistados, de que deviam esquecer os antepassados e deixar de falar esta língua atrasada e exótica: a «nação» pede que se esqueçam os antepassados. O dialeto não é língua é algo exótico, atrasado. E preciso abandoná-lo.
    No exército os filhos dos colonos tinham oportunidade de aprender o português. No entanto, o exército também incentivou muito o esquecimento dos antepassados. Em todos os depoimentos constatou-se, que havia a vontade de falar e de se comunicar em português. Não só se pedia que se esquecesse os antepassados, mas se incentivava o aportuguesamento dos nomes.
    Assim se expressa um expedicionário cujo pai se chamava Giovanni e a mãe Amábile, a respeito do problema que estes nomes italianos passaram a representar para os que desconheciam a língua:
    «No exército perguntavam: "Por que teu pai tem esse nome? Por que Giovanni? Mas, o que quer dizer Giovanni?" - "Quer dizer João" - "E Amábile?" - ‘E assim mesmo. E como se lê". Os conselhos que se recebia do exército é que se deveriam esquecer os antepassados» (Homem, 75 anos).
    «Até 1936 chamava-me Luigi... . Quando estava servindo o exército, o capitão Manoel Alire Borges Carneiro disse que não ficava bem este nome. Eu era imediato dele. Ele gostava tudo, na ponta da linha. Ai; não levou dois meses e foi trocado o meu nome em Indaial. Eles combatiam muito o comunismo. Devíamos falar o português e esquecer os antepassados. Eu era contra esquecer os antepassados. Eu era contra esquecer, porque eles não tinham culpa de ser italianos. Se eu pudesse, iria, hoje, para a Itália...! Não foi vontade minha trocar. Foi vontade do capitão. Ele dizia que era mais popular e pronunciável (Homem, 76 anos).
    Na verdade até aquele momento quase todos os nomes que recebiam o batismo eram os dos santos católicos e eram italianos. A troca de nomes e sobrenome foi, muito empregada pelos próprios italianos, para facilitar a vida, durante a nacionalização forçada:
    < Sul» do Rio em negócios faziam quando italiano, dar não para sobrenome, de trocar chegavam Itupava, Valada>(Homem, 70 anos).
    Outra forma através da qual os colonos foram agredidos em sua identidade cultural era a proibição de escutar rádio da Itália. Os depoentes negam qualquer ligação política com o nazismo e ou o fascismo, ao tentar acompanhar, pelo rádio, os acontecimentos a nível mundial.
    Era «saudosismo» diziam. A manutenção da língua, usos e costumes tinham um sentido sentimental. Sabe-se que antropologicamente é o momento da construção do espaço da dignidade, procura de poder e prestígio do grupo.
    «Não se podia escutar rádio. (Proibições tempo de guerra)» (Homem, 70 anos).
    «Vocês lembram pra quem vocês torciam aqui? Se torciam pela Alemanha ou pela Itália? Durante a guerra de ‘39 pra frente?»
    «A maioria dos alemães torciam pela Alemanha, na Itália tinha uma emissora, não me lembro mais o nome dessa emissora, e os italianos que possuíam seus rádios, escutavam o noticiário que vinha de lá, mas não eram por ser a favor ou ser contra o Brasil, nada disso. É que, este ou aquele que escutava aquele noticiário, não era ‘‘quinta-coluna ‘‘, nada disso, escutavam por ser descendentes daquela terra, por saudosismo. Eu, por exemplo, tinha meu rádio e escutava o noticiário que vinha da da Itália» (Homem, 80 anos).
    2.2.3.1 Os velhos: a autoridade desprestigiada
    Os velhos foram os mais atingidos no que se refere à violência que se abateu sobre uma população que não sabia se comunicar em português (V). Representariam eles, exatamente, a tradição viva de tudo aquilo que era necessário destruir? Seriam os mais vulneráveis? Representariam a autoridade, cuja coluna vertebral deveria ser quebrada? Seriam os mais fracos, já que a prepotência sempre é exercida sobre os mais desprotegidos?
    O depoimento que segue exemplifica, explicitando a própria essência da violência: a necessidade de mantê-los subordinados. Assim se expressa um entrevistado:
    < segundo fim No meses... dois mês, um Era delegacia. semanalmente apresentar, se Receberam interrogados. foram aí delegacia levaram já público; italiano falando presos anos, oitenta aproximadas idades com italianos velhinhos na>
    "Bom, agora podem ficar em casa" disseram os investigadores. Eles vieram de carroça, e naquele dia, alegres pela boa nova de não precisarem mais se apresentar, pararam, no primeiro boteco, tomaram uma pinguinha, ficaram alegres e saíram cantando. Foram para casa. Pouco antes de chegarem em casa, duas curvas antes, dois policiais de bicicleta chegaram mais perto da carrocinha. Avistaram os dois cantando e coisa e tal...:
    "VOLTEM."’. Então recomeçaram esta via sacra por não sei quanto tempo» (Homem, 86 anos).
    Na verdade bastava uma palavra, uma «parola». Em tudo sobressai o exagero. Mesmo que ninguém desafiasse, abertamente, a polícia, pois a população estava aterrorizada, pode-se facilmente imaginar que uma língua não se muda por decreto. Muitos continuaram falando italiano, com os cuidados que a situação impunha. E mesmo que fosse por uma única («parola» muitos foram parar na polícia. Os exemplos são muitos:
    «Meu pai foi na prisão. Eu também fui para levar fumo e meu pai estava diante do Hotel. Falei em italiano (baixinho) se queria ir para a casa. Ele disse que iria comer alguma coisa aí. Aí ele pediu um "Panet com café". A polícia escutou e prendeu. Aí eu fui e disse: "Deixa este velho em paz, que ele tem 81 anos". "Você também está preso!". Aí ele também me prendeu. Fomos os dois na prisão. Aquilino Bona trouxe comida. O meu pai não comeu. Ele disse: "Quando se fica velho se passa de tudo. Nunca precisei de autoridade na vida ". Na hora que fui preso, fiquei perdido. Fiquei ressentido» (Homem, 86 anos, 16 filhos).
    «Perguntou quanto custava uma enxada, respondeu com um mero número. Foi preso» (Homem, 70 anos).
    Os depoentes avaliam a violência como um «abuso desnecessário» um «excesso», uma «vergonha». O estigma de inimigo da pátria anulou a identidade real e os reduziu ao único aspecto que interessava realçar: não sabiam falar português! Como cidadãos de segunda categoria, assim considerados aos olhos dos governantes, eles tiveram, novamente, a sua cidadania dilacerada e se calaram, introjetaram o medo e submissão. Desenvolveram, também, processos de defesa mútua, como relata um entrevistado que faz comparação entre as atitudes dos italianos e as dos alemães:
    «Mas aqui entre os italianos, havia sempre o desejo de se defenderem um com o outro. Estavam sempre de olho, para não caírem as malhas da polícia, eles eram ladinos... Talvez, alguém chamaria covardia, mas da minha parte não, porque em certo sentido, é ser um pouco prevenido, para não ir para a cadeia, deixar um pouco o "barco correr". O alemão, não, ele é mais teimoso. Outros dizem mais decidido, mais consciente. Iam para a cadeia, sofriam os rigores da lei e não queriam ceder» (Homem, 86 anos).
    Muitos velhos perseguidos pela polícia e delatores tinham seus prório filhos lutando contra o Nazismo, na segunda Guerra Mundial, como expedicionários ao lado dos Aliados.
    2.3 A imobilização dos colonos.
    Os colonos não podem denunciar os excessos e não tem condições de defesa por desconhecerem a língua de seus agressores. Com exceção de algumas poucas pessoas bi1íngüeS, que moravam na cidade, usava-se o italiano em todas as atividades culturais, religiosas e econômicas. A sensação de impotência por não saber se defender no idioma nacional, foi forte em todos os depoimentos:
    «Em Rodeio quem sabia se defender eram bem poucos. Quem sabia falar era o Sílvio Scoz, que era o prefeito. Nem o delegado sabia falar português».
    Aqui também aparecei com muita clareza, o que Sonia Felipe (VXII) afirma:
    «A pessoa para se sentir igual tem que se comunicar nos signos de seu interlocutor. Nesse sentido, o conhecimento da língua é o espaço da dignidade. Defender-se é saber dar uma resposta à altura. Não ter esse instrumento para a comunicação é sentir-se como um verme.»
    Outro momento de impotência ante o arbítrio dos policiais refere-se ao fato do abuso sexual praticado contra as filhas dos colonos. Os policiais, aproveitando-se do medo que tinham os colonos de ser humilhados, por possuírem objetos «proibidos», muitas vezes cometiam abusos, assédio sexual, sem temerem serem denunciados pelos colonos, que, amedrontados se calavam. Ninguém reagia.
    «Esses investigadores invadiam as casas, às vezes com pretexto de ver se tinham armamentos e livros. Às vezes, desapareciam objetos de valor, em casa; denunciar não se podia, porque naquele tempo, não se podia denunciar.... Havia um investigador, era chamado de Rafael, aquele era um safado pelo seguinte: porque ele ía nas colônias, no interior, ele era meio velho, já casado, ele queria começar a namorar as filhas dos colonos e se não, ameaçava prender os pais. E os pais tinham que deixar. Engravidou moças e depois se mandou» (Homem, 86 anos) (XVIII).
    Como conclusão podemos acrescentar que os italianos não reagiram, e, talvez, esta seja uma conseqüência dos historicamente violentados. Sentiram-se, mais uma vez, inferiorizados, por não saberem falar a língua de seu país. Sua entrada no Integralismo fora a primeira tentativa de participação nos destinos do Brasil, e do exercício de cidadania. Foram desarticulados e torturados (ao menos os chefes). Agora cai sobre eles, como um terremoto, mais uma aterrorização que os imobiliza e amedronta:
    Paulilo (XIX) pondera:
    «Até que ponto o governo precisava de uma população amedrontada? Outras categorias reagiram e conseguiram os seus direitos. Quando os camponeses aderem ao integralismo e pedem os seus direitos, mexem na estrutura social. Getúlio mexeu nas estruturas e a elite cafeeira fez a revolução de 1932, envolvendo outras instâncias. São Paulo queria uma constituição que lhe desse mais direitos. Houve massacres e depois negociação e conseguiram o que queriam. Mas os camponeses?...>.
    Nos depoimentos dos colonos percebe-se que sentiram o castigo impingido como sendo forte demais. A percepção do problema se configura como um excesso desnecessário, pois não havia motivos para serem culpados por um erro que não praticaram. Os depoentes fazem questão de afirmar a vontade que tinham, além de aprender a falar português, ao mesmo tempo, de poderem conservar as raízes culturais, como direito inalienável. «A Pátria é brasileira, mas as raízes são italianas».Ao mesmo tempo, os mais novos afirmam nas entrevistas que, sentindo-se humilhados e tratados como cidadãos de segunda categoria, redobraram os esforços, no intuito de aprender o português, muitas vezes, por sua própria conta. Na verdade, muitos velhos morreram, sem saber falar a língua nacional.
    «Mas foi mana coisa forte demais. Pois se é para ter mau país brasileiro, que fala só português, até eu concordava. Mas não haviam escolas. Mas estes que vieram da Itália não podiam ensinar português para mim. Só falavam italiano. Agora, eu falo português de fato. Faço questão mais de falar português que italiano. Aprendi por minha conta. Mas não quero perder o idioma italiano» (Homem, 76 anos).
    Pode-se afirmar, como conclusão, que a frustração de não «ser nada» para o Estado nacional pela violência desencadeada, foi sentida e introvertida. O reprimido se cala. Esta emoção fica registrada no inconsciente. Os italianos não falaram mais sobre o que lhes tinha acontecido.
    O que sucedeu, pode ser considerado como um divisor de águas, a partir do abalo que o fato provocou na identidade étnica dos colonos, identidade esta compreendida especialmente como fidelidade lingüística no que concerne a transmissão do uso do dialeto.
    Como verificação própria avalio que somente em 1975 por ocasião do centenário da imigração um fato novo veio revalorizar a identidade étnica restituindo ao dialeto italiano a sua condição de ser uma língua como as outras. A partir da socialização - via palestras - do estudo sobre a bilingüidade dos colonos de Rodeio que se constituiu na dissertação da professora Andrietta Lenard (UFSC, 1975), a comunidade se conscientizou do valor de sua língua italiana. Até a década de ‘70 quando se perguntava a um colono se falava o italiano, a resposta vinha pronta: "Não, só falo o dialeto" (onde estava subentendido que era um pouco mais do que nada). «Somos italianos mas não sabemos falar italiano,só sabemos o dialeto... que não é língua!». Isto era certamente o resultado da estigmatização ocorrida 30 anos antes. De outro lado o depoimento, 50 anos depois, «Estou reconquistando o orgulho de ser filho de colonos e de falar com orgulho da minha língua materna>, confirma que a deteriorização da identidade étnica foi algo concreto. No entanto, não é tão fácil de perceber uma reflexão maior. A violência termina assim o seu ciclo, quando o dominado nega a sua própria dominação
    NOTASI - Anita Moser, natural de Rodeio, é professora de Sociologia na Universidade Federal de Santa Catarina. Tem feito estudos em 1980-83, sobre o processo de trabalho industrial numa fábrica de confecções em Rodeio, onde em 1974 foi utilizada em massa a mão de obra rural feminina do lugar. Em 1990 fez pesquisa sobre a presença do movimento dos "Sem Terra" dos descendentes dos imigrantes italianos vindos do Rio Grande do Sul para o Oeste catarinense. II - Muitos dos colonos perseguidos tinham seus filhos lutando, na Itália, contra o totalitarismo.III - "Terremoto" sugere guerra total. É esta a figura de linguagem com que os italias re-apresentam o ocorrido.IV - O entrevistado fala de um guarda cabolclo, chamado Dionísio, que era bom e condescendente, não prendia, só se estivesse perto dos amigos dele, pois se fosse em uma roda só de italianos, podia falar italianos, podia falar italiano, que ele não prendia. (Homem, 86 anos).V - Em cada município, são inúmeros od descendentes de italianos que ficaram 24 horas na prisão.VI - Sobre os filhos dos colonos da 2° geração que participaram, como expedicionáriso, na Segunda Guerra Mundial, há relatos sobre o que significou sua saída do ambiente da roça para os treinamentos do quartel e depois, para os campos de Guerra: "No primeiro tempo, no quartel, eu tremia. Era triste, diminuí cinco quilos. Fomos para Caçapava. Veio americano ensinar como era pra lutar na guerra. Os americanos eram limpos e bem educados, os chefes brasileiros eram estúpidos e grosseiros. Eles nos chamavam de filhos da puta, porcarias, vocês não valem nada. No Rio de Janeiro foi triste. Fiquei um mês e meio fazendo treinamento de guerra. Arrastar-se no chão com um fuzil na mão, o capitão atirava a trinta centrímetros do chão. Foram atingidos 10. Sofremos muito. No PIC (Diamantina) era só ir à misa e trabalhar na roça. Antes de ir pra Guerra, estávamos em 8.000 acampados. Fomos 10 km de caminhão, todos no trem e fechados, sem ver nada. Tínhamso a impressão que nos tratavam como animais. No navio desceram em duas fileiras. Lorenzi morreu de pneumonia na Itália. Lá, nós podíamos falar italiano."VII - Havia este costume na Itália de Mussolini. As conseqüências de terem de tomar óleo eram diversas: além da humilhação de ver-se reduzido a condição de um animal este castigo levava muitos a morrer nas prisões, em função da desidratação que o óleo provocava.VIII - Parece que a palavra "terremoto" consegue diferenciar a época em que conmstruíram sua existência e socializavram seus membros na base dos valores contidos linguagem com que como grupo étinico se reconheciam.IX - Interessante o estudo de M. D´ACÂMPORA, A Construção da Imagem do Inimigo: o Papel dos Joranis Durante a Segunda Guerra Mundial em Florianópolis (1939/1945), Tese, Mestrado em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1992.X - É muito comum encontrar-se nas paredes das casas dos colonos a par de fotos da família, uma foto de um jovem com o uniforme do serviço militar. Era o único e forte sinal de sua perternça ao Brasil como cidadão cumpridor de seus direitos cívicos.XI - D’ACÂMPORA, op. Cit.XII - Talvez seja interessante levantar em todos os recantos de Santa Catarina a história e a memória destes fatos. Nossa identidade se fundaria em bases mais honestas. Assumiríamos também este lado negado e temido: a história se faria justiça a tantos que sofreram e morreram humilhados e se restabeleceria a verdade. E especialemente estar-se-ia mais alerta para violências deste tipo não mais tivessem chance de acontecer.XIII - O que ficou claro, nas entrevistas, é que durante estes anos de proibição da língua, e da proibição de reunir-se, também deixaram a prática das cantorias. Os italianos cantavam muito. Qualquer reunião era motivo para cantar. "Todos aqueles cantos estão perdidos. A gente pegou a moda caipira e moda brasileira."XIV - Ver em Anexo XIII o Decreto-Lei n° 12, da Prefeitura de Blumenau, de 1938.XV - Entre os 25.334 homens das três armas, exército, marinha e aeronáutica, que o Brasil mandou para a Guerra, na Itália, 453 lá morreram. Entre esses estavam também muitos filhos destas regiões, cujos país estavam sendo perseguidos qui no Brasil por que falavam o italiano. Em Rodeio, por exemplo, partiram 30 pracinhas, que fizeram parte do exército brasileiro. No 50° aniversário do fim da Segunda Guerra, a prefeitura do Município de Rodeio ergueu um monumento aos filhos dos colonos que lá lutaram, e cujos pais estavam sendo aqui perseguidos.XVI - Este mesmo entrevistado afirma, em seguida,que na verdade, isto até foi bom, pois em Timbó eram os alemães que tinham os negócios. Antes da proibição de falar a língua, a gente chegava e nunca era atendido. Durante a perseguição começaram a atender, pois os italianos se faziam entender melhor.XVII - Felipe Sonia é doutora em Filosofia, professora no Departamento de Filosofia da UFSC. Organiza o núcleo de estudos sobre a violência, pesquisa e escreve sobre o tema.XVIII - Em seguida o entrevistado nomeia os filhos que o Rafael deixou por aqui e com quem se casaram etc.XIX - Paulilo Maria Ignez é professora doutora em Antrolpologia Social na Pós-Graduação em Sociologia na UFSC.XX - R. M. GROSSELI, Vencer ou Morrer - Camponeses Trentinos (Vênetod r Lombardos) nas Florestas Brasileiras, Florianopólis, ed. UFSC, 1987, p. 250-253.
    http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=200
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