Autor: Heitor Baptista Pato
viernes, 16 de noviembre de 2007
Sección: Artículos generales
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Apontamentos para uma litolatria cristã

São inúmeros em Portugal os casos em que pequenas cavidades ou inscrições nas rochas foram interpretadas pelo cristianismo como pegadas (vestigia pedis) ou marcas sobrenaturais (vestigia sacra).

As pegadas santas

São inúmeros em Portugal - e no Noroeste Peninsular, bem como noutros países da Europa - os casos em que pequenas cavidades ou inscrições nas rochas foram interpretadas pelo cristianismo como pegadas (vestigia pedis) ou marcas sobrenaturais (vestigia sacra).

Quanto à sua origem, os vestigia podem ser naturais, resultando de meros acidentes geológicos ou constituindo, mais raramente, impressões icnofósseis, como acontece no Cabo Espichel (Sesimbra), onde as pegadas de dinossáurios com cerca de 150 milhões de anos foram atribuidas à burra de Nossa Senhora; ou artificiais, como nos frequentes casos de cavidades (fossettes) e marcas (petróglifos) abertas ou gravadas pelo homem pré-histórico.

Mais ramente, existem também pedras pintadas, como acontece no sítio dos Tambores, na freguesia de Chã (Vila Nova de Foz Côa): a pedra ou fraga da cabeleira de Nossa Senhora é um enorme afloração rochosa atravessada por uma gruta, com entrada semicircular, pela qual se observa o nascer do sol nos equinócios; ali existe uma pintura rupestre que as populações locais interpretam como a cabeleira de Nossa Senhora. Adriano Vasco Rodrigues (7), que a estudou em 1982, considera que naquele obsevatório solar se praticava o culto do crânio que, associado à Deusa Mãe, teria sido mais tarde cristianizado sob a invocação da Virgem Maria.

Morfologicamente, podem ser agrupados em três classes: vestígios antropomórficos (mãos, dedos, pés, cabeça, cotovelo, rosto); vestígios zoomórficos (na sua grande maioria pegadas atribuídas a equídeos); e vestígios de objectos (a arca de Noé, o carro do diabo, os berços de fadas, a coroa de Nossa Senhora).
Quanto à sua explicação mítico-religiosa, as populações relacionam-nos com entidades suPeriores (Cristo, Nossa Senhora, o Demónio, Moisés, Buda, Maomé), com santos (especialmente Santa Eufémia e São Gonçalo, em Portugal) ou com entidades fantásticas (fadas, gigantes, bruxas, mouras encantadas).

As pegadas santas

O arqueólogo e etnógrafo Martins Sarmento foi, no séc. XIX, dos primeiros a chamar a atenção para estes vestigia. Em São Paio de Vizela (Guimarães), junto à igreja, observou as pègadinhas atribuídas a Cristo ou a São Gonçalo, na realidade duas fossettes abertas em dois rochedos cerca dos quais se viam, noutra laje, as marcas dos joelhos do santo (9, vol. I, p. 187); e menciona ainda outros sinais semelhantes a pegadas humanas no penedo de Santo André, em Nabais, e nas imediações do castro de Sabroso, estas associadas a várias covinhas. Em São Jorge de Vizela "vêem-se as pegadas do cavalo do Santo testemunhando a sua luta contra o dragão" ou uma serpente (p. 184). Em Tagilde (Guimarães) observou o penedinho de São Gonçalo, com mais de trinta fossettes: "Ninguém duvida que na corôa do penedo estão as marcas dos joelhos do santo, quando rezava; a cavidade onde punha o pucarinho do caldo; outra que lhe servia de saleira" (p. 188).

Também Leite de Vasconcelos (11, p. 130) se referiu a estas marcas gravadas ou cavadas nas rochas: "São vulgares os penedos em que se diz que existe a pegada de um santo (pegada de São Gonçalo, no Penedo da Moira ao pé de Felgueiras) ou de um burro (no Penedo da Santa no Paraíso ao pé de Guimarães)", aponta, "ou de Mouros (no Penedo dos Mouros ao pé de Braga), ou ainda de Jesus (pegada de Jesus em Cabeceiras de Basto). Ao pé de Lamego há a Fraga do Diabo com pegadas de animais e gente. Na Galiza há várias pegadas da Virgem (Ferrol)", a que poderíamos acrescentar, entre muitos outros exemplos, as já mencionadas huellas de la Virgen de la Nuez, em Huesca, as huellas de la Virgen e as marcas de ferraduras do cavalo de Santiago num penedo em Sotillo (Sanabria) - santo de que se contam, aliás, inúmeros vestígios em todo o Norte Peninsular - ou as pegadas da Virxe do Monte em Camariñas (Galiza); neste mesmo concelho encontram-se ainda as curiosíssimas pegadas de Camelle, atribuídas a Jesus Cristo, às ovelhas que o acompanhavam e ao demónio que o Perseguia.

Os arqueólogos Mário Varela Gomes e J. Pinho Monteiro (6, p. 159) apresentaram igualmente uma lista de rochas e estelas com podomorfos pré-históricos, interpretados como: pegadas da Senhora ou de Nossa Senhora em Cabeça Boa, Samil e Cabeço do Carocedo (Bragança), Aldeia Nova (Miranda do Douro) e Alagoa (Tondela); assento de Nossa Senhora em Trancoselos (Penalva do Castelo); pegadas da Senhora da Enxara em Ouguela (Campo Maior); fraga das patinhas da burrinha de Nossa Senhora em Travanca (Vinhais); penedo de Santa Eugénia (aliás, Santa Eufémia) em Covide (Terras do Bouro); pegadinhas de São Tiago em Marção (Viana do Castelo); pegadinhas de São Gonçalo em Luzim (Penafiel); e ferraduras de São Miguel do Outeiro em Tondela (Viseu).

O modelo típico está documentado no santuário de Santa Eufémia (São Pedro de Sintra), edificado nas proximidades de um povoado pré-histórico. Um painel de azulejos do séc. XVIII, que se reporta a uma antiga lenda, diz ter ali aparecido Santa Eufémia, martirizada no séc. II d. C., e que deixara a sua pegada no local onde aparecera, na realidade uma cavidade natural. Santa Eufémia - a que a hagiografia atribui nada menos de oito irmãs gémeas - deixou igualmente as suas pegadas na fraga da santa, em Covide (Terras do Bouro), quando teria sido martirizada ao fugir da Perseguição movida pelo pai (12, Tomo I, p. 470).

Junto ao Cabo da Roca, próximo da capela de Nossa Senhora da Peninha, existe uma depressão na rocha que algumas das tradições orais dizem ser "as pegadas da burrinha que era de Nossa Senhora" (2, p. 35). Nossa Senhora da Guia (Cascais) terá aparecido numa fonte, ou nascente hidrotermal, na qual se vê uma pegada de Nossa Senhora, e "juntamente se vé tambem na mesma pedra hua coroa esculpida" (8, Tomo II, Livro I, Tit. VIII, p. 30). Lenda similar se conta de Santa Marta (Ericeira), cujo primitivo templo do séc. XV se encontrava junto a nascentes hidrominerais, uma delas Perto de uma depressão cavada na rocha e conhecida por pezinho de Nossa Senhora.

Os exemplos abundam em todo o território, mas sobretudo no norte do País. Em Santa Maria de Rebordões (Ponte de Lima) estão os pratinhos de Nossa Senhora. Em Bravães (Ponte da Barca) cultua-se Nossa Senhora da Pegadinha, que apareceu a dois pastores órfãos, deixando as marcas dos pés gravadas numa pedra. Na fonte da pegadinha da Senhora, no monte d’Assaia, ou da Saia, em Barcelos, vê-se a marca da ferradura do burro que a levou para o Egipto; muito Perto fica a laje dos sinais, com insculturas rupestres. O Senhor do Monte apareceu em Pinho (Boticas) e deixou gravadas as suas pegadas. Também em Valboa (Góis) se vêem numa laje de xisto as marcas de um pé direito e das patas de uma burrinha de Nossa Senhora. Em Sátão (Viseu), no cimo de um penedo, alguns petróglifos são interpretados como as pegadas da burrinha de Nossa Senhora; o mesmo acontece na fraga da burrinha em Souto Maior (Sabrosa) e nas pegadas da burrinha de Nossa Senhora em Vilar de Perdizes (Montalegre). Numa outra fraga da Senhora da Serra, em Rebordãos (Bragança), as gravuras rupestres foram interpretadas como as ferraduras da burrinha que levou Nossa Senhora para o Egipto. Em Rebordelo (Vinhais), a burra de Nossa Senhora - que nela viera de Espanha, fugindo aos mouros - deixou nos rochedos as marcas das suas patas; e quando a Senhora, fugindo da Perseguição de Herodes, passou com São José e o Menino por Santa Combinha (Macedo de Cavaleiros), refugiou-se numa fraga junto à praia do Azibo, aí se vendo as marcas da burra, de um cavalo e o local onde um dos soldados romanos que a Perseguiam bateu com uma moca.

As explicações populares para estas ocorrências são por vezes romanceadamente elaboradas. Diz o povo que a Sagrada Família, na sua fuga para o Egipto por causa da Perseguição de Herodes, passou por Alvoco da Serra (Seia). Aí quis Nossa Senhora descansar, porque estava com sede. São José ordenou ao burro que a transportava que desse um coice numa pedra; o animal assim fez, "mas a pedra não tugiu"; à segunda tentativa, "a pedra gemeu"; e ao terceiro coice "a pedra chorou", dela tendo jorrado água. Os coices do animal ficaram gravados na Fonte da Pedra com três marcas de ferraduras: da primeira não brota água ("não tugiu"), da segunda escorre um pequeno fio ("gemeu") e da terceira brota a fonte ("chorou"); e à água se atribuem propriedades terapêuticas para curar as verrugas nas mãos. Acrescenta a lenda que sobre uma pedra próxima estendeu Nossa Senhora uma toalha para merendar e que, por isso, nunca desde então essa pedra se cobriu de musgo. Uma outra lenda da mesma localidade diz-nos que uma princesa moura se apaixonou por um pobre pastor; o rei lançou um encantamento à filha, prendendo-a numa rocha, na qual ainda hoje se vê o formato de um corpo humano deitado.

Mais a sul do País, na Benedita (Alcobaça), Nossa Senhora apareceu numa fonte pedindo que ali lhe erguessem uma capela; e para atestar a verdade da aparição matou um boi, ressuscitou-o e deixou gravadas três pegadas numa pedra junto à fonte. Ainda na zona estremenha, mencionem-se as pegadas da Virgem que se observam na fonte de água milagrosa do santuário de Nossa Senhora da Misericórdia, em Moita do Ferreiros (Lourinhã).

Petrofanias e litolatria cristã

Nem sempre as marcas - como se vê por alguns dos exemplos atrás mencionados - são atribuídas à Virgem ou à sua montada; são-no também a santos, ao demónio, a bruxas ou a moiras.

Em Mesas (Vagos) está a pedra de Santa Catarina, com as suas pegadas; em Alijó (Vila Real) vêem-se as marcas do corpo de Sant’Ana, que se deitara a dormir numa fraga; em Santana (Sousel) fica a pedra de Santa Ana; em Sernande (Felgueiras) existem as pegadas de São Gonçalo; em Tourim (Arcos de Valdevez) uma fraga insculpida é chamada penedo de Santa Comba; em Subportela (Viana do Castelo) vêem-se as pegadas de São Silvestre, a pia em que se lavava, buracos para os castiçais e as marcas do seu bastão e do seu martelo; em Lagoncinha, no rio Ave, há umas pegadas de bruxas; e pegadas do diabo existem em Sousel ou na herdade da Raposa, em São Geraldo (Montemor-o-Novo), enquanto no convento de Santo António (Ponte de Lima) se vêem numa pedra as unhas do diabo. Mencione-se ainda, num caso que julgo único em Portugal, a curiosíssima referência topográfica a uma pegada de Deus nas proximidades da ermida de São Brás (Tavira).

Em Lisboa conhecem-se desde 1240 e até ao séc. XVIII referências ao sítio do Pee de Mulo. E vem a talhe de foice recordar uma antiga tradição referente aos santos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia, em cuja honra mandou D. Afonso Henriques edificar a igreja de Santos-o-Velho: informa Júlio de Castilho (4, vol. V, p. 14) que na praia de Santos era frequente surgirem uns calhaus rolados com um desenho em forma de cruz e manchas sugerindo sangue, que os devotos identificavam como sendo as pedras sobre as quais os mártires haviam sido arrastados. Citando Marinho de Azevedo nas suas Antiguidades, acrescenta: "E a mesma fé se tem com alguns marmelinhos e Pereiras daquele sítio, em cujo fruto se acham as mesmas cinco riscas, e estas árvores as há no jardim de D. Francisco de Alencastre - (o actual palácio Abrantes) - e em alguns quintais das casas próximas à igreja dos Santos Mártires."

Ainda em Lisboa, junto à fonte do Convento de Nossa Senhora da Luz (Carnide), dizem as Memórias Paroquiais de 1758 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tomo IX, f. 917) que ali "se conserva a preceoza pedra onde se veneram os sagrados vestigios das celestes plantas de Maria Sanctissima".
No monte de São Bartolomeu, próximo da Nazaré, existem as pegadas que o santo ali deixou ao combater o demónio (1, Cap. XXVIII).

Já na Nazaré é bem conhecido o episódio da pegada do cavalo de D. Fuas Roupinho, companheiro do primeiro Rei português, mencionado na lenda de Nossa Senhora da Nazaré. Afirma essa lenda que, Perseguido pelo demónio disfarçado de veado, esteve D. Fuas Roupinho na iminência de se precipitar no abismo, tendo sido salvo pela Virgem e ficando as patas do cavalo gravadas no local onde se deteve. A tradição referente a D. Fuas Roupinho apresenta paralelos com outras historietas muito semelhantes, como a de Nossa Senhora do Salto, em Aguiar de Sousa, em que se vêem as marcas deixadas por um cavalo que, ao transpor o rio Sousa, salvou um cavaleiro tentado pelo Demónio. Também um pouco por toda a Europa existem lendas similares: sirva de exemplo a de São Voto, um nobre aragonês do séc. VIII que, nas proximidades do monte Pano em Jaca (Huesca, Aragão), Perseguia um veado, sendo miraculosamente salvo de cair no precipício ao invocar São João Baptista; aí se vêem, no mosteiro de San Juan de la Peña, as marcas deixadas pela montada.

Como se disse, em muitos destes casos as supostas pegadas constituem na realidade cavidades e petróglifos pré-históricos, maioritariamente datáveis da Idade do Bronze e da Idade do Ferro. Os motivos podomorfos - de pés nus ou de calçado - são bastante comuns em Portugal, estando associados a covinhas (fossettes), círculos, espirais e motivos ondulados e apresentando-se quase sempre insculpidos em lajes horizontais. O seu significado, no entanto, continua hoje a ser uma incógnita: para alguns autores marcariam o itinerário sagrado que uma divindade ou um herói civilizador teria Percorrido nos tempos das origens, tendo talvez servido para rituais iniciáticos; para outros indicariam o lugar em que o oficiante, o cultuante ou um chefe tribal deveria situar-se aquando da realização de cerimónias de culto ou de entronização; para outros, ainda, poderiam assinalar redes de comunicação ou mapas entre aldeias pré-históricas, ser marcadores territoriais tribais ou constituir verdadeiros ex-votos de Peregrinos, ali gravados em reconhecimento de graças recebidas (recorde-se o possível paralelo, já em tempos romanos, com a lápide votiva com dois pés proveniente da cidade de Itálica, Sevilha, dedicada à "deusa que cura a alma", provavelmente Diana). Em qualquer dos casos, representam verdadeiros sinais de comunicação entre aquelas populações.

A sua interpretação religiosa - cristã ou pré-cristã - e o respectivo culto litolátrico estão documentados um pouco por todo o Ocidente: "A crença de que certas pègadas (…) se ligam com determinadas Personagens historicas e religiosas, e com animaes, data já da antiguidade, e acha-se ainda hoje espalhada por muitas partes: temos, por exemplo, pègadas de Hércules e Budha, de Adão, de Moisés, de Jesus, do Diabo, de Gargantua, de Roland; pègadas de muitos santos, como S. Martinho(*), S. Miguel, Santo Hilário, S. Gonçalo; pègadas de gigantes (…); pègadas de burros, de cavalos, etc.", esclarece Leite de Vasconcelos (10, vol. I, p. 381). Noutros casos estes petróglifos são atribuídos em Portugal às moiras encantadas, o que parece confirmar a hipótese de a sua veneração ser muito antiga, datando de tempos pré-históricos: de facto, as moiras nada têm que ver com o domínio muçulmano da Península, são sim a remanescência de antiquíssimos cultos a uma Deusa-Mãe, ligada a cultos da fertilidade e ofiolátricos e senhora do inframundo.

Frequentemente apontados em todas as culturas humanas e em todos os tempos, estes vestigia são quase sempre atribuídos a entidades suPeriores. Citem-se apenas alguns exemplos: na península da Escandinávia, no norte da Alemanha e na região ocidental de França observam-se as marcas de dedos de gigantes. Marcas das garras do Demónio vêem-se em Colónia e em Saint-Pol-de-Leon, ao passo que no mar de Mohriner se observa a marca deixada pelo ombro da própria avó do Diabo. Em Ehrenberg estão as marcas do dedo mínimo de Cristo e da cabeça de Satã. Próximo do monte Sinai era exibida a marca do corpo de Moisés. Em Jerusalém vêem-se as marcas dos pés de Abraão (que também se vêem no makâm Ibrahîm do santuário de Meca), bem como a faixa que a Virgem Maria lançou a São Tomé, e as pegadas de Maomé quando subiu ao Céu (que se observam também no Cairo). Pegadas atribuídas a Cristo são veneradas um pouco por toda a Palestina, mas também em Itália ou em Fança. Em Roma, na igreja de Santa Francesca Romana, vêem-se as marcas dos joelhos de São Pedro e de São Paulo; e, na igreja de Domine Quo Vadis, na Via Apia, vêem-se os pés de Cristo quando exortou o apóstolo São Pedro a regressar a Roma e aceitar o martírio.

A veneração cristã tributada aos misteriosos petróglifos (e falsos petróglifos) parece encontrar o seu modelo na antiguidade clássica: em Tyras, na Cítia, observavam-se as impressões dos pés de Hércules; em Biblos deixou Adónis as suas pegadas; na gruta do centauro Quiron, os deuses reunidos para celebrar o casamento de Tétis e de Peleias marcaram os seus cotovelos; Alexandre o Grande viu, no Cáucaso indiano, a gruta de Prometeu e as marcas das cadeias que ali o acorrentavam; e marcas do cavalo de Castor viam-se, nos tempos de Cícero, num rochedo próximo do lago Regillus, no Lácio.

Especial menção merece uma montanha situada no nordeste do Sri Lanka - a Ceilão dos portugueses - a que os cingaleses chamam Samanhela, objecto de cultos multisseculares devido a uma depressão com cerca de dois metros de comprimento existente no afloramento rochoso do seu topo: ao longo da história, esta concavidade natural foi sendo sucessivamente interpretada por crentes budistas, muçulmanos, taoístas e cristãos como sendo uma pegada gigantesca de Buda, do antepassado de uma divindade chinesa, de Adão (feita por ele pouco depois de ser despenhado do Paraíso) ou do apóstolo São Tomé (na versão dos portugueses que ali chegaram no séc. XVI).

Culto das pedras: da pré-história ao cristianismo popular

Por ultrapassar o âmbito deste trabalho, não abordo aqui pormenorizadamente um outro aspecto do "culto das pedras", ou litolatria, com que se cultuou magicamente algumas formações geológicas estranhamente esculpidas pela acção do tempo.

Limito-me a enumerar os lapiás de Negrais (Sintra), que a evolução geológica recortou em formas evocadoras de animais, com ocupação desde o Neolítico; o santuário megalítico de Odrinhas (Sintra), em que alguns afloramentos rochosos naturais foram transformados em menires, alguns deles com fossettes; o alinhamento de Caneças (Sintra), nitidamente resultante da adaptação e consequente tratamento de afloramentos naturais; a formação natural da Pedra Branca (serra de Sintra), que figura um gigantesco coelho e foi talvez objecto de culto zoolátrico; o monumento natural de Adrenunes, na mesma serra, que aparenta ser um dólmen, aliás assim erradamente interpretado por autores do séc. XIX, e onde as populações pré-históricas depositaram ossadas humanas; o santuário de Chãs (Vila Nova de Foz Coa), da transição o Paleolítico para o Neolítico, em que afloramentos simulando forma de animais e aves poderão ter estado na origem do culto astrolátrico ali verificado; os recintos megalíticos de Pavia e Xarez, no Alentejo; ou ainda os pseudo menires naturais como a Pedra Alçada, ou Pedra do Galo, em Santiago Maior, entre Redondo e Pias, no Alentejo.

Especial destaque merece, no entanto, o pseudo-menir da rocha dos namorados em São Pedro do Corval (Reguengos de Monsaraz), objecto de um culto oracular da fertilidade, de origem pagã que sobrevive até hoje. As jovens solteiras da região continuam a cultuar o oráculo, na segunda-feira de Páscoa, lançando de costas três pedras sobre o topo, ou "chapéu", do geomonumento: cada pedra que não acertar significa um ano de atraso no noivado ou no casamento. O pseudo menir, com mais de 2 metros de altura e em forma de cogumelo ou de útero, foi cristianizado através da inscrição de uma cruz e constituía local de paragem obrigatória nas "procissões da seca" que ligavam a ermida de Nossa Senhora do Rosário do Corval à antiga Aldeia do Mato, actual São Pedro do Corval. Tradições idênticas de culto oracular registam-se noutros locais de Portugal ("penedo casamenteiro" no santuário de São João d'Agra, em Caminha, Minho), na Galiza (santuário da Virxe da Barca, em Muxía, Corunha), na Estremadura espanhola (o menir de Porra del Burro, Valência de Alcântara) ou no Brasil (Paquetá, Rio de Janeiro).

Noutros casos sacralizaram-se locais numinosos como grutas, covas e falésias, alguns cristianizados através da erecção de templos: as falésias embranquecidas pela erosão junto ao santuário da Peneda (Arcos de Valdevez) são interpretadas como a camisa que Nossa Senhora vestia antes de subir aos céus. Quando revestiam formas antropomórficas ou zoomórficas, ou quando se tratava de fósseis, terão talvez sido venerados desde tempos pré-históricos, como no caso da "bicha pintada" de Milreu (Vila de Rei), um fóssil de aracnídeo marítimo interpretado como uma cobra (3, p. 21): as actuais populações ligam-no à lenda de uma moura encantada, sendo de notar que nas proximidades se ergue a igreja de Nossa Senhora da Conceição, actualmente de Nossa Senhora da Graça (5, p. 18), frequentemente associada a serpentes; e situação semelhante poderá ter-se verificado com as pegadas icnofósseis do cabo do Espichel, porventura motivo de culto já na pré-história.

Nalguns casos estes sítios foram excomungados pelos cristãos e, noutros, benditos através da inscrição ou aposição de cruzes; o mesmo aconteceu com alguns dólmens, não raramente transformados em capelas cristãs, como a anta-capela de Pavia (Mora, Évora), dedicada a São Dinis, a de São Brissos ou de Nossa Senhora do Livramento junto ao Escoural (Montemor-o-Novo), a de Nossa Senhora do Monte (Penedono), a de Santa Madalena das Alcobertas (Rio Maior) ou a de São Bento do Mato na Azaruja (Évora).

Por outro lado, e em ligação com cultos propiciatórios de fecundidade que se verificam um pouco por todo o País, ainda hoje se presta reverência a pedras de escorregar ou penedos de casamento, que são por vezes menires megalíticos; a penedos de forma mamilar, que se pintam de branco e que favorecem o aleitamento; ou a gretas e fendas sugerindo o aparelho genital feminino e em que se constroem monumentos cristãos. É o caso do santuário de Nossa Senhora da Lapa (Quintela, Sernancelhe), erguido em torno de enormes fragas que simulam uma anta. A capela-mor está encostada a esta formação geológica, dando acesso a uma fenda estreitíssima - a rachinha de Nossa Senhora - através da qual é muito difícil passar-se; quem o faz deve esfregar-se contra as rochas, tentando arrancar pequenos fragmentos, ou pó, das paredes da lapa. Às festas afluem inúmeros romeiros das regiões vizinhas, sendo uma das mais concorridas romarias da região e, antigamente, uma das mais importantes de toda a Península. O altar foi erguido dentro da gruta, no local onde uma pastora, de nome Joana, encontrou a sua imagem. A "casa dos milagres", repleta de ex-votos pintados (entre os quais um lagarto, em memória de um milagre ocorrido na India), documenta bem a expansão deste culto, que alguns autores afirmam remontar ao séc. X.

Exemplos de outros santuários litolátricos são o de Nossa Senhora da Estrela, na Redinha (Pombal), construído sobre um maciço rochoso, com a capela-mor a penetrar na lapa, ou o santuário do Bom Despacho em Cervães (Vila Verde), em que a capela-mor se encosta a dois grandes rochedos, que servem aliás de tecto ao altar.

BIBLIOGRAFIA

(1) ALÃO, Manoel de Brito - Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa S. da Nazareth, etc., Lisboa, Pedro Crasbeek Impressor, 1628 (ed. de Pedro Namorado, Nazaré, Ed. Colibri, 2000)
(2) CAETANO, Maria Teresa - Contributo para o estudo das lendas de Nossa Senhora da Peninha, in Etnografia da Região saloia - A Diversidade do Quotidiano, vol. II, Sintra, Instituto de Sintra, 1999
(3) CARVALHO, C. Neto de, CACHÃO, M. e RAMOS, Joana - A "Bicha Pintada" (Milreu): 500 Milhões de anos de histórias para contar, in Boletim
(4) CASTILHO, Júlio de - A Ribeira de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1968 (2ª ed.)
(5) CASTRO, Sérgio Sodré de - Sondando hierofanias no Milreu, in Boletim Informativo da Câmara Municipal de Vila de Rei, Julho 1999
(6) GOMES, Mário Varela e MONTEIRO, J. Pinho - As rochas decoradas da Alagoa, in O Arqueólogo Português, série III, vols. VII a IX, Lisboa, 1074-1977
(7) RODRIGUES, Adriano Vasco - Terras de Meda - Natureza, Cultura e Património, 1982
(8) SANTA MARIA, Frei Agostinho de - Santuario Mariano, E Historia das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora, etc., Lisboa, Of. António Pedrozo Galrão, 1707/1723
(9) SARMENTO, F. Martins - Materiaes para a Archeologia do Concelho de Guimarães, in Revista de Guimarães, Porto, Typographia de António José da Silva Teixeira, 1884
(10) VASCONCELOS, J. Leite de - Religiões da Lvsitânia, etc., Lisboa, Imprensa Nacional, 1897/1913
(11) VASCONCELOS, J. Leite de - Tradições Populares de Portugal (ed. M. Viegas Guerreiro), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986
(12) VIEIRA, José Augusto - Minho Pitoresco, Lisboa, Livraria António Maria Pereira, 1886



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Comentarios

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  1. #1 giannini 24 de oct. 2007

    ¡Cumprimentos de novo! Repito o que xa dixera onte e que me borraron, entendo que por un erro.


    No Concello de Arteixo (Coruña), érguese o Santuario de Pastoriza, ao pé dun castro homónimo. No monte da Cruz, mui Pertiño dese castro, hai uns penedos que serven para practicar ritos ancestrais. Nun deles, con forma de cadeira, dise que se sentaba o rei suevo Reckiario a contemplar a súa cidade de Suevos, que supoñeremos que se atoparía na parroquia de San Martiño de Suevos, no mesmo Concello de Arteixo. Noutro penedo, os romeiros dan tres voltas para logo bicar a imaxe da Santa que preside as rochas. Di a lenda que a igrexa de Pastoriza foi fundada polos suevos e destruída polos normandos. A poboación agochou a imaxe da santa nos penedos e unha rapariga que pastoreaba gando atopouna nese lugar que hoxe serve para dar as tres voltas. Deixo unha imaxe dos penedos que atopei nunha web:


    http://www.panoramio.com/photo/92718

  2. #2 Semeraro 26 de mayo de 2008

    Como veo que eres un exPerto en litolatrías, me gustaría que me dieras tu opinión sobre las piedras del Valle de la Fertilidad (búscalo en los poblamientos)


    Un saludo

  3. Hay 2 comentarios.
    1

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