Autor: Francisco Martins Sarmento
sábado, 24 de septiembre de 2005
Sección: Artículos generales
Información publicada por: bracarense


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O que podem ser os mouros da tradição popular + A Mourama

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As tradições populares, a que anda ligado o nome de mouros, são alguns séculos mais velhas que a aparição dos mouros (árabes) na Península; ou, para tirarmos a esta afirmação o seu ar paradoxal, o nome de mouros intrometeu-se sub-repticiamente num corpo de tradições, que estavam formadas, muito antes da invasão árabe na Espanha.
Sem levarmos em conta uma grande massa de superstições e de crendices, que pertencem a este ciclo pseudo-mourisco, basta-nos considerar os dois seguintes factos:
— O povo atribui aos mouros todas as antigas construções, cujas relíquias abundam nos nossos montes e vales;
— Embora encantado, o mouro habita ainda hoje as fontes, penedos, etc.
Quanto às construções, há já a notar que muitas delas se encontram em lugares, aonde não chegou a sombra da dominação árabe. Mas os monumentos em si, que são em regra os castros, memórias sepulcrais, fontes, penedos, etc., fazem-nos revelações muito mais positivas.
Suposto seja difícil marcar época precisa, em que os castros foram abandonados e o motivo porquê, pode todavia afirmar-se com certeza que o seu abandono é muito anterior à invasão muçulmana.
As memórias sepulcrais, mamoas com antas, ou sem elas,etc., são contemporâneas dos castros, algumas mais antigas ainda; e aqui o facto que ocasionou o desprezo, em que elas caíram, está manifestamente indicado: a revolução religiosa operada pelo Cristianismo. Era certamente sobre estas sepulturas gentílicas que se praticavam as cerimónias fúnebres que pretenderam mais tarde naturalizar-se nos cemitérios cristãos e que os concílios repeliram de lá à força de anátemas. Imagina-se se tais práticas seriam consentidas sobre os próprios túmulos dos idólatras, dos adoradores dos demónios, e se as sepulturas destes se não tornariam nas “sepulturas de asno” da frase bíblica, que parece ter-se popularizado entre nós.
Ao mesmo mundo ante-cristão pertencem sem dúvida as Fontes, Penedos, etc. É impossível deixar de ver neles as Fontes, Lápides, Saxa, cuja adoração provocava as indignações dos concílios bracarenses e toledanos.
Assim os monumentos atribuídos aos mouros não só estavam em ruínas muito antes da aparição dos mouros no nosso país, mas as tradições, que neles se localizaram, ou nunca se formariam, ou datam necessariamente do dia em que o paganismo, deixando de ser uma realidade, começou a entrar na sua elaboração lendária. Isto é tão intuitivo, que qualquer demonstração seria uma afronta ao bom senso.
Como o nome de mouro veio ingerir-se e dominar nas lendas do velho mundo pagão, é o que o mesmo nome de pagão nos parece explicar. Pagão era, como se sabe, a denominação favorita, dada pelos cristãos aos religionários que eles vieram destronar. Ora que este nome não somente estava em uso ao tempo da invasão dos árabes, mas que foi, conjuntamente com o de mouros, transferido para os árabes, vê-se tanto pelas antigas crónicas (Chronicon Conimbricense, etc.); como pelos instrumentos públicos (Viterbo, Eluc., V. Terra de pagons).
Os nomes de mouro e pagão tornaram-se sinónimos, e, como quase sempre sucede no conflito de dois sinónimos, prevaleceu o vocábulo que tinha por si uma realidade objectiva: o nome abstracto de pagão desaparece(1), o étnico de mouro fica, substituindo aquele em todas as suas aplicações, sem embargo dos mais grosseiros anacronismos.
Sendo assim, basta a possibilidade da identificação de mouro e de pagão, para nos aclarar por certas faces a concepção, que à data da entrada dos árabes se tinha formado no espírito do nosso povo acerca da entidade, que os mouros vieram substituir.
Pois que contra esta identificação não reagiu a qualidade de estrangeiro, saliente no árabe, claro é que a reminiscência do laço étnico, que prendia os construtores dos antigos monumentos do nosso país aos seus subsequentes habitantes, estava completamente obliterada.
Este fenómeno, a muitos respeitos deplorável, é um produto legitimo da revolução cristã. A vitória do Cristianismo tinha como resultado infalível abrir um abismo profundo entre a geração, que o abraçou definitivamente, e as gerações passadas, que o haviam combatido: dum lado a cidade de Deus, doutro a cidade dos demónios. A negação de todo o parentesco moral entre o cristão e o pagão continha em si a tendência para a negação de todo o parentesco material, e esta tendência apenas podia ser contrariada pela autenticidade das tradições genealógicas. Mas este elemento de resistência, que só conseguiria tirar forças da perpetuidade do velho culto dos mortos, dissolve-se depressa em virtude do facto contrário: as gerações cristãs não só não tinham que ir fazer aos túmulos dos seus passados, mas deviam esforçar-se por esquecer quanto antes aquela desonrosa ascendência.
Concebe-se pois uma época, em que os pagãos, esses fautores duma civilização destruída e amaldiçoada, que se sumiram no nada sem deixar representantes, nem, ao que parecia, descendentes, comecem a desenhar-se no vago do passado, como um povo, a todas as luzes estranho aos povos cristãos, e principalmente notável pela guerra ímpia, feita ao Cristo e à sua Igreja — característica que é a afinidade electiva e única que os aproxima dos mouros e determina a sua identificação com eles.
Contra a indiferença, com que a tradição popular deixa cair no olvido as suas origens étnicas, parece protestar o vivo interesse, que ela consagra às histórias dos “mouros encantados”, e o zelo com que no-las tem transmitido de geração em geração.
Mas aqui estamos sem a menor dúvida em face doutra ordem de ideias.
A enorme vitalidade destas lendas, a par do carácter sobrenatural que nelas transparece, inculcaria já a sua origem religiosa, se o facto de vermos estes seres encantados frequentando de preferência os Penedos e as Fontes, contra cuja adoração os concílios tanta vez clamaram, nos não desse a certeza de que estes mouros e mouras encantados não podem ter sido primitivamente outra coisa mais que divindades pagãs, que os cânones atacavam implicitamente nas suas excomunhões.
Se se pergunta agora como é que estes deuses destronados vingaram que a sua imortalidade atravessasse os séculos cristãos, apesar dos anátemas da Igreja, há a responder que a Igreja não contribuiu pouco para esta imortalidade.
Lembremos que o Cristianismo acreditava tão deveras na realidade dos deuses pagãos e no seu poder taumatúrgico, como os próprios pagãos. O que os propagandistas da religião nova não concediam era a sua natureza divina. Tinham-nos por demónios. Mas, deuses, ou demónios, eram imortais, de sorte que a crença popular nestas entidades sobre-humanas e nos seus milagres não tinha sido ofendida no essencial, antes fora robustecida com uma consagração solene e insuspeita.
E o que se vê também é que esta crença manteve uma independência tal qual contra o ensino da Igreja. Esta não pôde naturalizar os velhos deuses no pandemónio católico, pois que os vemos hoje ainda, bem que sombras duma sombra, nos mesmos lugares das suas antigas glórias (Fontes, etc.), sem feição alguma que os assemelhe ao diabo.
Se porém a negação da tradição pagã soube triunfar neste
ponto das imposições do Cristianismo, o Cristianismo pelo seu lado conseguiu destruir inteiramente a divindade dos ídolos; e é, nos parece, da intransigência destas duas negações que nasceu a estranha concepção das entidades “encantadas”, que nem são deuses, nem demónios; em seguida a degeneração antropomórfica delas até o ponto de tornar inevitável a fusão do elemento mítico e histórico, saliente nas lendas dos mouros encantados, e por fim a conversão do mito em pseudo-história.
Realmente o povo não distingue a entidade histórica, que construiu os castros e as sepulturas, da entidade mítica que na noite de S. João sai do centro dos penedos, etc.; umas e outras têm o mesmíssimo carácter; e, se se faz o inquérito severo destas crendices, vê-se bem que na imaginação popular todos estes personagens se moveram e movem num meio humano e verdadeiramente histórico. Que os envolva o mais evidente sobrenatural, pouco importa. Tudo isso é ingenuamente explicado como uma qualidade peculiar aos homens dos outros tempos.
Resulta do que fica dito, que neste mundo de mouros encantados se amontoam muitíssimas reminiscências do antigo mundo pagão, e só do mundo pagão, numa confusão aparente, que a crítica está no caso de deslindar.
O que há aí de realmente histórico é a memória dum povo, hostil ao Cristianismo, que deixou inumeráveis vestígios da sua existência nos mil monumentos em ruínas dispersos pelo país — os pagãos.
Tudo o mais, ou quase tudo o mais, são factos míticos, a “lenda áurea” deturpada dos antigos deuses, quer nacionais, quer lendários — factos que se transformaram em histórias o, de que ficaram sendo heróis os mesmos pagãos, enquanto que as desprezadas divindades, despojadas do seu nome e tradições, se esconderam na sombra, não sem comunicar aos seus substitutos humanos os restos avariados da sua imortalidade.
Que toda esta evolução estava efectuada, quando os árabes se mostram, parece-nos incontestável.
Se a substituição de mouro ao pagão não era possível sem a obliteração de todo o parentesco que o relacionasse ao nosso povo, menos possível era ainda que os mouros se insinuassem no “mundo encantado”, se os actores deste mundo não tivessem descido à categoria de personagens puramente humanas.

Guimarães, Janeiro, 1881

(1) Não inteiramente. Ainda hoje uma madrinha, entregando à mãe a criança que levou à pia do baptismo, diz indiferentemente: “Levei-o amoirado, trago-o baptizado”, ou “Levei-o -pagon, trago-o cristão”. - Mas, se se repergunta pela palavra “pagon”, é bem possível que replique: “pagon, pavom, ou lá o que é”. (Histórico).





A Mourama

Mouros: Castro de Santo Adrião de Vizela -moura, que sai da pedra e casa no sítio (1); Cristelo -mouros (estátuas) na mina (2); Abação -moura na poça (3); Penha -mouros no castro em luta com os de Lijó (4); S. Martinho de Conde -moura-serpe (Scórpio) (5); Gandarela - moura = rapazinho (6); S. Martinho de Candoso; mouros dos Sumes, moura no penedo do José Bastos (7); moura na pedra flutuante (inf. de Ronfe) (8); Serzedelo - diabo na mina (9); Silvares -moura na pedra flutuante (10); S. João de Ponte -moura na mina de Vila Cruz (cobras)(11); moura que fala na capela de Campelos (12); Idem, perto da S. Crau (Vizela) (13); Mouros de S. Torcato que combatem com os da Citânia (14); Garfe, moura que canta = fala (15); Souto, moura que fala (Penícias) (16); Freitas - S. Torcato - moura = saramela (17); Aldão, moura que fala (18); Vila-Fria, ponte feita pelo diabo (19); Garfe - cadeira do diabo (20); Sande (S. Clemente?) moura que fala (21); Citânia (22); Donim - pedra flutuante (23); cavalo do pensamento (24); Airão, moura em pedra flutuante (25).
Aqui temos 25 lugares do nosso concelho [Guimarães - Portugal] importantes pelos mouros, não falando nos lugares cheios de riqueza, onde eles se subentendem sempre. Já exprimi a opinião de que estas entidades não eram outra coisa mais que fantasmas de divindades pagãs, que o cristianismo não pode aniquilar e cuja persistência e modo de ser nas crenças populares é um facto etnológico de rica significação, por mais dum título.

Temos visto que os mouros e mouras infestam ainda todas os pontos do nosso concelho, sobretudo os castros e as suas imediações. A crença popular nestas entidades é tão viva e está tão profundamente radicada no espírito do povo, como a das «almas», e ambas elas têm relações mais intensas e explicáveis do que pode parecer à primeira vista. Veremos isso mais adiante. Há ainda não pouca gente que, levada pelo nome de mouros, supõe que as tradições mouriscas são um dos resultados da influência árabe do séc. VIII.

Nem coisa que o pareça; e bastará comparar a nossa mourama com o fairyland irlandês, para, depois de reconhecer as suas inteiras analogias, nos desenganarmos, de que ambos eles são resultados de um mesmo fenómeno etnológico. E, como na Irlanda, graças principalmente aos documentos escritos estas lendas encantadas denunciam inequivocamente a sua origem, é por elas que vamos começas esta investigação. O fairyland irlandês é constituído principalmente pelos Tuatha de Danann, um povo que alguns sábios têm como puramente mítico -opinião que não pode aceitar-se sem grandes reservas, penso eu, mas que admitirei provisoriamente, para não embaraçar, emaranhar, este estudo.

Para confirmar esta doutrina bastar-nos-á, me parece, comparar a nossa mourama com o fairyland irlandês -comparação tanto mais instante, que na tradição da verde Erin o povo que até às invasões (tardias) germânicas (sic) na ilha teve ali a hegemonia foram os Milésios, emigrados do noroeste da Espanha, que se fundiram com os Tuatha de Danann, então dominantes, e gente da mesma raça. Ora na Irlanda os Tuatha de Danann representam exactamente o mesmo papel que os mouros nas nossas tradições populares. Assim, segundo uma tradição, os Tuatha eram imortais, e eram imortais porque não eram outra coisa se não os anjos rebeldes, que só podiam ser destruídos com o fim do mundo e o juízo final. Aqui há uma influência bíblica manifesta, que não data senão dos tempos posteriores ao cristianismo na Irlanda, mas muitos destes anjos rebeldes conservam ainda os nomes dos velhos deuses druídicos, como Manann, Dagda, Bodhb, etc, e por consequência não são outra coisa senão os velhos deuses irlandeses, destronados pelo Cristianismo. Este facto é indiscutível, e muito significativo. Identificados depois com os anjos rebeldes da tradição bíblica, também se vê que só o Cristianismo bastava para a gratificação com o dom da imortalidade estas misteriosas entidades.

É preciso advertir que neste particular o que sucedeu na Irlanda, sucedeu em toda a parte; tal era a força do prejuízo que os apologistas cristãos nunca negaram a realidade dos deuses antigos, nem o seu poder e a sua quase omnipotência taumatúrgica; o que negaram era o seu emprego para o bem, e a necessidade de a contrariar e anular com a fé no verdadeiro Deus e da sua infinita superioridade no capítulo dos prodígios. Assim, como já sucedera a Moisés em face dos padres egípcios, os evangelizadores sustentaram um verdadeiro duelo taumatúrgico com os sacerdotes pagãos, como S. Patrício, acabando sempre, já se vê, por um triunfo completo. Os prodígios excediam muitas vezes o que a imaginação pode conceber de mais estrambólico, como o caso de .........., que viveu vários anos sem cabeça. Certo é que indirectamente os padres cristãos contribuíram para a imortali-dade dos antigos deuses, podendo mesmo dizer-se que, se um filósofo libre-penseur atacasse semelhante imortalidade, os apologistas tinham restrita obrigação de tomar o partido do paganismo, sob pena de negar a realidade dos demónios. Parece história, mas é isto.

Assim, retornando aos nossos lares, é bem visto que Bormânico e as ninfas lupianas de Vizela, o Júpiter da nossa ribeira (S. Faustino), o Júpiter e o Corono de Serzedelo, o Durbédico de Ronfe, o Camal da Citânia, que as inscrições, as ninfas de Guimarães, o génio Laquiniense de Vizela celebrizam são outros tantos demónios, que aí ficaram, imaginando-se a multidão de outros que escaparam à consignação dos respectivos devotos, ou cujas memórias estão por aí sumidas debaixo da terra. O Cristianismo condenou-os, como aos Tuatha de Danann, a abandonar os seus altares, erguidos à luz do sol, e a sumirem-se por onde puderam, mas nos sítios onde primitivamente dominaram, exercendo todavia a sua extraordinária actividade, ora surdamente, ora ostensivamente aparecendo aos seus favoritos sob as formas as mais diversas. Mas não tem dúvida nenhuma que o proselitismo cristão não conseguiu dar-lhes o carácter odioso, que tinham na mente. Nem os mouros e mouras da nossa tradição, nem os fairies (nas das irlandesas), se tornaram odiosos; muito pelo contrário, todos eles têm a devotada simpatia dos rústicos e pudera não, se bastaria uma palavra deles para os encher de riquezas.

Certo é que por fim tiveram de abandonar os seus altares, não abandonando porém os sítios, onde dominaram, mas escondendo-se por aqui e por ali, revelando-se de quando em quando aos mortais. Um facto digno de nota é que todos os esforços dos propagandistas foram inúteis para os tornar odiosos. Na Irlanda estes encantados são chamados o «bom povo». Se os agravam e injuriam, a sua vingança faz-se muita vez sentir pesadamente; mas, em regra, não são maléficos; ao contrário, são muito sensíveis aos bons tratamentos e gratificam com tesouros sem preço os que conseguem cair-lhes nas boas graças. E é decerto esta uma das causas que contribuíram para a sua perpetuidade. O irlandês, como o português com relação aos mouros, sonhando ardentemente com a fortuna de topar com um destes amigos misteriosos, dificilmente os podiam esquecer.
Devemos acentuar bem que os famosos tesouros, de que dispõem os Tuatha e os mouros, não são tão fantásticos como isso, e o carácter arqueológico destas preciosidades mais valida a crença nestes encantados dispensadores de riquezas. No célebre «Colloquio» (Gadélica) explica-se por mais de uma vez muito naturalmente, sem recurso ao sobrenatural, os esconderijos destas riquezas. Cailte, um dos poucos sobreviventes dos Fiannes por mais do que uma vez recome com as suas forças hercúleas um monólito que cerrava o túmulo de um velho guerreiro, pondo à vista um espólio maravilhoso, que reparte com S. Patrício e os espectadores. Os nossos tesouros encantados são também em regra uma rica mobília funerária, vasilhas cheias de dinheiro, etc, etc...
Aos Tuatha correspondem exactamente os nossos mouros e, visto isso, não pode haver dúvida alguma, creio eu, que os mouros e mouras são precisamente os fantasmas dos velhos deuses lusitanos, conservados na tradição popular do mesmo modo e pelo mesmo processo que no mundo irlandês. É também como tais que eles são imortais. O diabo que, muita vez, anda com eles de braço dado, não é também, não pode ser o diabo bíblico, e nós já vimos como em Garfe, a «cadeira do diabo» entra de direito no mundo mourisco. Sem dúvida o nome de Jesus pode inutilizar qualquer operação ciprianista, mas é que os mouros são equiparados a anjos rebeldes e tanto devem temer a cruz quer foi ela que lhes fez perder o seu império. Também o esconjuro pretende arrancar o tesouro à força; mas com certeza é isto uma treta, sem grande apoio na crença popular. Ninguém se lembrou nunca de fazer o sinal da cruz, quando encontrou uma moura a assoalhar as suas meadas de ouro. Pois não?
Mas o mundo encantado não compreende apenas as entidades reconhecidas, à primeira, como mouros e mouras. Os seus actores apresentam-se sob diferentes formas, muito dessemelhantes. Assim, à mesma categoria pertencem sem dúvida os dançadores da história dos dois corcundas.

Assim, já vimos que uma lenda repetida à saciedade no nosso concelho é a da moura que vai para a mourama numa pedra flutuante. Este modo de transporte não é desconhecido na Irlanda: S. Molarins, voltando de Roma, atravessa para a Irlanda em cima duma pedra. E é mais para reflectir que há grandes dúvidas sobre se os velhos santos irlandeses, alguns, pertencem realmente à galeria cristã se à druídica. Mas aqui temos coisa mais fina: Bodbh, a ....... de Dagda, uma entidade mitológica pura, vendo Cailte, um dos últimos Fians, sentado num penedo à beira-mar, aproxima-se dele, vindo do alto mar, chegada a certa distância, senta-se comodamente sobre a superfície da água e interpela-o amigavelmente.
A moura, porém, na nossa tradição como que vive dentro da pequena pedra que é arrojada no rio. Mas as fairy irlandesas também vivem no interior das pedras.
O que é agora o fairyland ou a mourama? Entre nós parece ter-se radicado a ideia de que era uma região ultramarina, que acabou por ser identificada como a parte da África, onde se refugiaram os árabes, expulsos da península; mas é mais que provável que só a primeira parte tem uma raiz verdadeira. Muita vez na tradição irlandesa o fairyland, propriamente dito, é equiparado à «terra a promissão», mas esta terra da promissão fica em pleno mar; só tem portanto de reminiscência bíblica o nome.

A mourama — O nosso povo toma a mourama em mais de um sentido. Assim Sabroso é uma mourama mais pequena que a Citânia. É o sentido restrito; neste a mourama é como a side irlandesa — uma localidade onde habitam os mouros encantados, que, por qualquer motivo não puderam abalar daqui num certo momento histórico, que se não precisa. Mas noutro sentido, a mourama é um país distante, que do mesmo modo se não precisa. Assim, o homem de Donim foi le-vado para a mourama, e, para voltar à terra, teve de vir no «cavalo do pensamento», que preferiu ao «do vento». As mouras desencantadas vão também sentadas numas pedras pelos rios abaixo, que as levam sem dúvida ao mar, e daí quem sabe aonde.
Ora tudo isto não passa de patranhas; mas o nosso século de crítica toma a sério estas patranhas, que lhe exprimem uma ideia, e ninguém dirá que o não tem conseguido graças ao método comparativo... principalmente, e o inquérito de todos os ramos de história. Assim ninguém pode contestar hoje que a nossa mourama, como a fairy irlandesa (limitemos as coisas), é o velho mundo mitológico dos nossos passados, digamos tudo, o mundo religioso que sobreviveu ao Cristianismo.

in http://www.csarmento.uminho.pt/docs/ndat/rg/RG100_11.pdf


Mais sobre as Mouras...

A tradição popular refere, amiúde, a existência de mouras, em menções de várias lendas. Os factos são complexos e baralhados. Vamos dividi-los em dois grupos, para melhor os estudar. Assim, temos:

1. Mouras encantadas.
São seres, diz Leite de Vasconcelos, dotados de força sobrenatural, que vivem em certos locais, como se estivessem adormecidos, enquanto certas circunstâncias não lhes quebrar o encanto. Estes locais são, normalmente, poços, fontes, cisternas, montanhas e ruínas. Por vezes têm um aspecto sedutor e apresentam-se aos viajantes que passam pelos seus domínios, convidando-os a passarem no dia seguinte, com alusões a objectos preciosos que guardam e propostas diversas. A crença popular acredita na possibilidade de se transformarem em serpentes. Martinho de Dume, o evangelizador do Minho (Séc. VI), designava as mouras da época (lamias) como mulheres-demónios expulsos do céu!
Diz ainda a opinião popular que estas mouras se encontram nesses locais a guardar tesouros deixados pelos mouros, até que alguém os possa descobrir.

2. Mouras fiandeiras.
Estão associadas às construções dos antigos monumentos porque, acredita-se, enquanto acarretavam as pedras à cabeça iam a fiar com uma roca à cinta. E até se dizia em tempos, lá para os lados da Citânia de Briteiros, que se via de vez em quando uma moura a fiar enquanto pastoreava o gado.

Tudo indica, no entanto, que as histórias das mouras encantadas ou fiandeiras tenham origem muito anterior à presença dos mouros no país. Sabe-se que, no primeiro século da nossa era, tinham "sido vistos" à beira mar, perto de Lisboa, um tritão, com o seu búzio, e diversas nereides. O tritão (sereia-macho) é um símbolo mitológico-cabalístico com origem na lenda de Perséfone e que significa que "alma sobrevive ao corpo". Foi complexa a evolução da sua imagem. Entre os Gregos tem forma alada. Depois tomou a forma de mulher, com as pernas em forma de peixe. É assim que aparece nas pinturas e esculturas nas igrejas. Com o tronco masculino e cara barbada surge nos documentos náuticos dos séc. XV e XVI e em alguns monumentos, como os de Conínbriga.

E em Lisboa também se encontram facilmente restos dessas crenças, o que não admira sendo uma cidade tão antiga. Ainda hoje há um sítio, nesta cidade, chamado Cova da Moura. De facto, na região existem muitas covas, lapas e grutas, que tiveram serventias diversas. Da cova da Moura não resta o menor vestígio, estando o sítio ocupado pelo casario.

A relação das mouras com o elemento líquido é evidente. A santificação e o culto das águas tinha, para os antigos lusitanos, grande importância. Não diminuiu na época lusitano-romana e em muitos casos mantém-se ainda. A água tem mesmo grande importância em qualquer cerimónia religiosa. É um importante símbolo, que se relaciona com a vida, com as origens, com o renascimento e a regeneração.

Na crença popular há também, ainda hoje a convicção da existência de "águas mortas" (a que está fora de casa, à meia-noite) e de "águas vivas" (as que brotam da terra e têm prestígio sagrado. As águas mortas podem ser vivificadas com uma fórmula que todas as crianças conheciam. Todavia, na manhã de S. João, todas as águas são consideradas sagradas, porque são fecundadas, nesse dia, pelo Sol. E daí a existência dos banhos santos no dia de S. João, como é hábito, por exemplo, na praia de S. Bartolomeu do Mar (Esposende).

Más informacióen en: http://www.csarmento.uminho.pt/docs/sms/obra/FMSDispersos_011.pdf


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