Autor: António José Saraiva
lunes, 13 de junio de 2005
Sección: Artículos generales
Información publicada por: bracarense
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O Condado de Coimbra
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A região entre o Douro e o Mondego nunca parece ter sido inteiramente pacificada pelos muçulmanos. Entre 717 e 1064 Coimbra mudou várias vezes de mãos. Depois da primeira conquista (717), os muçulmanos tiveram de a reconstruir em 825 e em 987.
Sabemos que um pouco ao norte em Lafões, havia por volta do ano 1000 uma população mozárabe que se auto governava; e os outros indícios ainda nos levam a crer que nesta região montanhosa se conservavam pequenos povos independentes, sem dúvida guerrilheiros, como os antigos Lusitanos.
Segundo os analistas, Coimbra foi completamente arrasada por Almançor em 987, e só 7 anos depois começou a ser reconstruída. Isto prova que a resistência da população, que após cada conquista voltava a assenhorar-se da cidade, era um problema para o governo muçulmano da Península. O repovoamento, depois da destruição de 987, deve ter sido efectuado por árabes e mozárabes. Mas esta última fase da história muçulmana de Coimbra pouco mais durou que 70 anos.
Em 1064, Fernando I integrou-a definitivamente na Espanha cristã, depois de um cerco de 6 meses. Sabe-se que os conquistadores cristãos foram abastecidos pelos monges do mosteiros de Lorvão, que, pelos vistos, escapavam também ao “controlo” muçulmano. E também muito perto estava, em poder de Portugueses, a povoação e castelo de Montemor, conquistado 30 anos antes por Gonçalo Trastamires.
Mas o mais interessante desta história, é que no exército cristão se encontrava, um chefe mozárabe, Sismando, filho de David (Davidiz), que tinha aconselhado a Fernando I a conquista da cidade. O nome patronímico David é curioso, porque sugere uma ascendência judaica, mas nada sabemos a esse respeito. Era senhor de terras em Tentúgal, na região de Coimbra; e entre o Douro e o Mondego deve ter guerreado os muçulmanos. Em dado momento passa para o lado deles e aí teve uma carreira brilhante, pois chegou a ser o principal valido do emir de Sevilha. Mas, por razões desconhecidas, voltou ao campo cristão e alcançou grande influência junto de Fernando I, sem todavia perder os contactos e relações com os seus antigos protectores, pois viajou a terras muçulmanas em negociações por conta do rei da Espanha cristã.
Esta duplicidade não era caso excepcional, porque sabemos que outros chefes lusitanos tinham, antes dele, estado ao serviço de cristãos e mouros.
Foi este homem excepcionalmente dotado que, após a conquista de Coimbra, Fernando I entregou o governo do território. Sisnando ficou formalmente vassalo de Fernando; mas, na realidade, a sua situação era de chefe absoluto, como a do Cid em Valência – até ao ponto que foi ele que escolheu o primeiro bispo de Coimbra. O seu território, limitado pelo Douro, o Mondego, a vertente sul da Estrela e o rio Côa, foi no seu tempo um verdadeiro Estado independente da região de Portugal e da Galiza, e estado hereditário, visto que pela morte de Sisnando, em 1092, passou a seu genro Martim Moniz. Talvez fosse este o alvo das suas ambições. Mas a sua escolha para este cargo poderia justificar-se com a consideração de que, sendo ele mozárabe e amigo de muçulmanos, além de natural da região, estava apto a resolver os problemas particulares de uma cidade profundamente arabizada e de um território híbrido, com vários séculos de tradição mozárabe.
Sisnando usou na qualidade de senhor do território conimbricense, o título árabe de “alvasil” ou “wasir”, ao lado dos títulos de “conde”, que era o mais elevado abaixo de rei, e de “cônsul”, que julgo equivalente ao de regente. Rodeou-se de pessoal administrativo mozárabe, senão mesmo árabe, e podia facilmente recrutá-lo na própria cidade. O estilo dos documentos da sua chancelaria, nota Herculano, reflecte a influência dos documentos muçulmanos congéneres.
De Toledo, ainda então muçulmana, vêm famílias mozárabes acolher-se à sua protecção. Nomes híbridos, meio cristãos, meio árabes, figuram em vários documentos. Há um presbítero chamado Zoleiman (nome muçulmano) filho de Leovigildo (nome visigótico); outro chamado Petrus (nome latino) Zoleima. Numa mesma família há um irmão que se chama Abderrahman, outro Justo e uma irmã Maria.
Nesta época estava em processo a luta entre o chamado rito mozárabe, que fora já o da antiga igreja visigótica, e o rito romano que os Papas tentavam impor na Península, por intermédio dos monges de Cluny e com o apoio de Alfonso VI, o filho de Fernando, Sismando tinha escolhido para bispo de Coimbra um mozárabe anteriormente bispo de Tortosa (em território muçulmano) e ele próprio, numa das suas viagens pacíficas a terras de mouros, o trouxera de Saragoça.
Portugal e Galiza foram sempre terras aferradamente conservadoras; Braga e Coimbra foram as últimas dioceses da Península a aceitar o novo rito. Depois da morte de Paterno, Sisnando escolheu para lhe suceder o prior do cabido da catedral, chamado Marinho, mas o Papa e os outros membros do cabido não o confirMaram, e só enquanto Sisnando viveu este clérigo (sem dúvida também mozárabe) pode usar o título de bispo. Foi preciso esperar pela morte do enérgico “wasir” (1091) para que um novo bispo, fiel a Roma, pudesse ocupar o cargo e introduzir a nova liturgia.
Como notámos já, durante o governo de Sisnando, Coimbra foi um governo separado de Portugal e da Galiza. Os portugueses, que anteriormente tiravam a sua relativa autonomia de serem terra de fronteira, com extensões para o Sul, viram-se então ameaçados de serem completamente absorvidos pela Galiza. O rei Garcia, efémero rei da Galiza, passa o Minho e desbarata perto de Braga um exército português, comandado pelo conde Nuno Mendes, em 1071.
Entretanto Coimbra, alheia a esta guerra civil, conserva a sua autonomia. Dois anos depois da morte de Sisnando, Raimundo de Borgonha, genro de Afonso VI, intitula-se “senhor de Coimbra e toda a Galiza”, o que parece mostrar que se distinguia o território de Coimbra de todo o outro além Douro, incluído sem distinção na expressão “Galiza”. Voltava-se á velha divisão romana entre a Lusitânia, ao Sul do Douro, e a Galiza, ao Norte.
O primeiro título usado pelo conde D. Henrique, pai de Afonso Henriques, parece ter sido o de “conde de Coimbra” (1095). Mas, pouco depois, obteve também o governo da Galiza ao Sul do Minho, já então conhecida por “terra de Portugal”.
Da união dos dois territórios, o condado de Portugal e o de Coimbra, nasceu finalmente o reino de Afonso Henriques, cujo aio, Soeiro Mendes, era ao mesmo tempo neto do conquistador de Montemor, sobre o Mondego, e senhor de Penafiel, ao Norte do Douro.
Mas parece que Coimbra tinha conservado o gosto pela Independência, ganho durante as suas lutas centenárias contra os governos muçulmanos e reforçado durante o governo mozárabe do conde Sisnando e do seu bispo D. Paderno. Pelo foral que deu em 1111 o conde D.Henrique, sabemos que a cidade se revoltara contra este seu senhor, o qual, para poder entrar nela, teve de pactuar com os chefes da revolta.
Dos factos expostos, muito em resumo, resulta, primeiramente, que o reino de Portugal nasceu da junção de dois territórios, um galego e chamado propriamente de Portugal, entre o Minho e o Douro; outro Lusitano, entre Douro e o Mondego. Este último, terra incerta de guerrilhas, só teve nome conhecido depois que, pela conquista de Coimbra, ficou definitivamente integrado na Espanha cristã. Este facto confirma, a meu ver, a hipótese de uma continuidade entre o núcleo montanhoso da antiga Lusitânia e o reino de Portugal. A segunda conclusão é que a parte que viria a ser o coração de Portugal histórico, os vales e contrafortes da Estrela, foi uma terra tipicamente mozárabe, em que se misturaram duas civilizações diferentes, a do Norte, cristã, e a do Sul, muçulmana. Quando Afonso Henriques elegeu Coimbra para sua capital, encontrou um centro patriótico já perfeitamente organizado e, ao mesmo tempo, uma cidade profundamente arabizada.
E disto encontramos eco na tradição épica de Afonso Henriques. Quando foi excomungado pelo bispo de Coimbra, ele próprio – repetindo o gesto do conde Sisnando – escolheu entre os cónegos da Sé um novo bispo, que era, segundo a mesma lenda, um “negro”. E esse clérigo tinha um nome bem mozarábico: Martinho Colcima. É de lembrar que o bispo nomeado por Sisnando também se chamava Martinho, e que os documentos nos atestam, em Coimbra, vários clérigos chamados Zoleiman ou Zolcima.
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